Durante as duas horas que se seguiram, Jaden e Daisy foram bombardeados com as gargalhadas agudas e infantis de Nathan, devido ao filme de comédia que estavam a ver. Quase todas as pessoas que estavam sentadas naquela sala de cinema punham os olhos, não no grande ecrã, mas sim no rapaz que se ria às gargalhadas e mastigava sonoramente as suas pipocas.
Por mais que quisesse, Jaden não conseguia estar atento a qualquer pormenor do filme, e só dava por si a pensar em Thomas, e no que acontecera há nem uma hora atrás. Era óbvio que toda a gente tinha direito a ter um dia em que estivesse menos disposta, contudo, para Thomas, nenhum dia parecia ser generoso. A sua expressão constantemente apática, os seus olhos a fixarem o nada, os seus lábios cerrados, a sua ligeira inquietação sempre que não conseguia falar com Jaden. E quando conseguia, um sorriso quase bizarro aflorava-lhe do rosto, o que o deixava inevitavelmente desconfortável. Nitidamente algo se passava dentro daquela mente que parecia não se focar em nada.
- O que é que se passa contigo? – indagou Daisy, à saída do cinema, analisando a expressão ausente da Jaden. – Não falaste nada durante o filme!
- Óbvio, não é? No cinema não é suposto falar! – ripostou Jaden, impaciente.
Daisy semicerrou os olhos e riu-se ligeiramente. Jaden fora obrigado a mentir-lhe. Não que ela tivesse algo contra Thomas, mas preferiu não falar sobre o assunto, pois, apesar de todo aquele turbilhão de pensamentos, conseguiu divertir-se e abstrair-se de todos os acontecimentos dos dias anteriores. Talvez fosse isso mesmo que Daisy pretendesse com aquela saída a dois (que mais tarde passou a ser a três).
- Fogo! Estava tanta gente na casa de banho! – exclamou Nathan, saindo da casa de banho.
Quando saíram do cinema, já o céu se encontrava num tom arroxeado, pronto para anoitecer, pelo que dera a Jaden a ligeira sensação de que o inverno se estava a aproximar definitivamente. Mas por outro lado, as ruas encontravam-se mais movimentadas do que nunca. Multidões apressavam-se para o interior das lojas de rua, outras apenas se encontravam em esplanadas a conviver, ouvindo-se gargalhadas e conversas alheias. A avenida principal onde se encontravam a maior parte dos restaurantes, cinemas e lojas ia sendo salpicada por um espectro enorme de luzes que provinham dos reclames luminosos e dos candeeiros de rua.
Jaden sentia-se ligeiramente aliviado e de consciência leve por ter passado aquele dia com os seus dois amigos. Todos os seus problemas desapareceram fugazmente, dando lugar a uma sensação de descontração e divertimento que já não sentia há muito tempo. Já não tinha mais daqueles vislumbres desproporcionados daquele acidente com o rapaz nem pensava mais em Thomas que lhe ocupara a cabeça durante toda a sessão de cinema.
Enquanto andavam por entre a multidão, aparentemente sem rumo, Nathan continuava a comer as suas pipocas e a recordar entusiasticamente os colegas dos melhores momentos do filme, como se eles não tivessem estado na mesma sala de cinema que ele.
- Adorei quando aquele menino feio, o Kyle, apanhou os pais a fazer filhos – disse Nathan, com um sorriso perverso e os dedos a tamborilar uns contra os outros à frente da cara.
Daisy abriu a boca teatralmente e olhou o colega completamente chocada.
- … E foi tão fofo quando o Kyle deu aquele abraço à mãe!
Daisy fitou Jaden, completamente fora de si. Tinha estado a conter-se para não dizer a Nathan que não o queria ali com eles, a pedido de Jaden. Mas os comentários descabidos do rapaz, a aliar-se ao facto de não se ter calado a sessão inteira, parecia ter desperto uma nova raiva nela.
- AH! E a melhor parte do filme foi quando a Alyson deixou cair o copo de água e todos pensaram que ela tinha feito xixi nas calças – gracejou Nathan, comendo as pipocas directamente do balde de cartão azul.
- É, essa foi definitivamente a parte mais engraçada do filme – murmurou Daisy, enojada ao ver o colega lamber a coca-cola como se fosse um cão a beber água.
- Mas mesmo assim… - prosseguiu Nathan, com uma expressão lamuriosa – queria ter ido ver o filme do porco e da vaca! Deve ser tão giro!
Jaden e Daisy trocaram dois olhares impacientes e ignoraram o amigo como haviam feito o caminho todo.
- Bem, vão-se sentando, eu vou à casa de banho – declarou Jaden, enquanto pousava o casaco numa cadeira da esplanada e os seus dois colegas se sentavam.
- Está bem… o que é que queres para comer? – perguntou Daisy, abrindo a carta do menu.
- Uma coisa qualquer… o que vocês comerem!
- Aha! Deixa isso comigo, vou aqui procurar um iogurte para ti! Ou então um gelado de iogurte! OU UM BOLO DE IOGURTE! – Nathan quase que amachucava a lista nas suas mãos ossudas, enquanto Daisy o fitava impacientemente.
- Nós vamos jantar, Nathan! Vais jantar iogurtes?
Mas Jaden não ouviu o resto da discussão, pois já se tinha posto a milhas daquela mesa. Entrou pelo restaurante e procurou uma casa de banho. Uma vez mais deu por si a pensar em Thomas. O rosto longo e pálido, os seus olhos apáticos causavam-lhe um arrepio imenso que lhe comprimiu a boca do estômago.
Mas os seus pensamentos foram interrompidos pelo toque do telemóvel. Era a sua mãe, pelo que Jaden se lembrou logo que lhe ficara de ligar assim que o filme acabasse.
- Estou, mãe… - atendeu, fechando os olhos, como se estivesse a esperar um sermão. Mas para seu gáudio, a sua voz serena e doce continuava igual.
- Então, filho. Como foi o cinema?
- Foi fixe… agora vim aqui a um restaurante jantar com os meus colegas.
Devido ao barulho que se fazia ouvir dentro do restaurante, Jaden viu-se obrigado a sair pela porta das traseiras, indo dar a um beco deserto. Olhou em redor. Encontravam-se caixotes do lixo a transbordar, ladeando muros velhos e com lascas de tinta a saírem. Os mesmos encontravam-se cobertos de graffiti já atenuados e não havia qualquer tipo de iluminação.
- Jaden? Estás… ouvir-me… Jad… - e subitamente a chamada caiu.
Jaden desligou e analisou aquele beco. Olhou para a porta de onde tinha saído, vendo-se tentado a voltar a lá entrar. Daisy e Nathan já deviam estar a dar por sua falta. Mas algo o impediu de tocar na maçaneta com a sua mão esquerda. O seu braço estacou por momentos, como se estivesse algo a imobilizá-lo. Olhou para a marca, e esta debatia-se contra a pele, como se estivesse a pulsar, e denotava um tom escarlate que fez com que Jaden sentisse uma ligeira sensação de desconforto.
E nesse preciso instante, um estrondo que se assemelhava ao de uma porta velha de ferro a ser fechada com muita força, irrompeu por trás de si, pelo que se virou num sobressalto. O coração começou a chocalhar contra o seu peito, e um calor descontrolado fazia-lhe o sangue subir à cabeça. De facto, atrás de si encontrava-se uma porta de aço ferrugento, com inúmeros graffiti a cobri-la quase por completo.
- Está aí alguém? – perguntou Jaden, a sua voz trémula a ressoar asperamente por todo o beco, vindo a confirmar que se encontrava completamente só.
Por um momento fugaz, voltou a pensar em regressar para o restaurante, mas sem êxito. Agora encontrava-se focado na porta ferrugenta que tinha acabado de se fechar com um estrondo. Aproximou-se, pegando na pega lascada de ferrugem que se soltou quando a sua mão lhe pousou por cima, e abriu-a. Os seus olhos arregalaram-se, e o seu coração pareceu debater-se num ápice ao ver o interior do que aquela porta selava. Numa fração de segundo, o único desejo que lhe aflorou no seu íntimo foi não estar ali, mas algo o puxava cada vez mais para dentro. A espiral no seu braço contorcia-se, enterrando-se na carne do braço, como uma lâmina.