21º Capítulo - O Beco



Durante as duas horas que se seguiram, Jaden e Daisy foram bombardeados com as gargalhadas agudas e infantis de Nathan, devido ao filme de comédia que estavam a ver. Quase todas as pessoas que estavam sentadas naquela sala de cinema punham os olhos, não no grande ecrã, mas sim no rapaz que se ria às gargalhadas e mastigava sonoramente as suas pipocas.
Por mais que quisesse, Jaden não conseguia estar atento a qualquer pormenor do filme, e só dava por si a pensar em Thomas, e no que acontecera há nem uma hora atrás. Era óbvio que toda a gente tinha direito a ter um dia em que estivesse menos disposta, contudo, para Thomas, nenhum dia parecia ser generoso. A sua expressão constantemente apática, os seus olhos a fixarem o nada, os seus lábios cerrados, a sua ligeira inquietação sempre que não conseguia falar com Jaden. E quando conseguia, um sorriso quase bizarro aflorava-lhe do rosto, o que o deixava inevitavelmente desconfortável. Nitidamente algo se passava dentro daquela mente que parecia não se focar em nada.
- O que é que se passa contigo? – indagou Daisy, à saída do cinema, analisando a expressão ausente da Jaden. – Não falaste nada durante o filme!
- Óbvio, não é? No cinema não é suposto falar! – ripostou Jaden, impaciente.
Daisy semicerrou os olhos e riu-se ligeiramente. Jaden fora obrigado a mentir-lhe. Não que ela tivesse algo contra Thomas, mas preferiu não falar sobre o assunto, pois, apesar de todo aquele turbilhão de pensamentos, conseguiu divertir-se e abstrair-se de todos os acontecimentos dos dias anteriores. Talvez fosse isso mesmo que Daisy pretendesse com aquela saída a dois (que mais tarde passou a ser a três).
- Fogo! Estava tanta gente na casa de banho! – exclamou Nathan, saindo da casa de banho.
Quando saíram do cinema, já o céu se encontrava num tom arroxeado, pronto para anoitecer, pelo que dera a Jaden a ligeira sensação de que o inverno se estava a aproximar definitivamente. Mas por outro lado, as ruas encontravam-se mais movimentadas do que nunca. Multidões apressavam-se para o interior das lojas de rua, outras apenas se encontravam em esplanadas a conviver, ouvindo-se gargalhadas e conversas alheias. A avenida principal onde se encontravam a maior parte dos restaurantes, cinemas e lojas ia sendo salpicada por um espectro enorme de luzes que provinham dos reclames luminosos e dos candeeiros de rua.


Jaden sentia-se ligeiramente aliviado e de consciência leve por ter passado aquele dia com os seus dois amigos. Todos os seus problemas desapareceram fugazmente, dando lugar a uma sensação de descontração e divertimento que já não sentia há muito tempo. Já não tinha mais daqueles vislumbres desproporcionados daquele acidente com o rapaz nem pensava mais em Thomas que lhe ocupara a cabeça durante toda a sessão de cinema.
Enquanto andavam por entre a multidão, aparentemente sem rumo, Nathan continuava a comer as suas pipocas e a recordar entusiasticamente os colegas dos melhores momentos do filme, como se eles não tivessem estado na mesma sala de cinema que ele.
- Adorei quando aquele menino feio, o Kyle, apanhou os pais a fazer filhos – disse Nathan, com um sorriso perverso e os dedos a tamborilar uns contra os outros à frente da cara.


Daisy abriu a boca teatralmente e olhou o colega completamente chocada.
- … E foi tão fofo quando o Kyle deu aquele abraço à mãe!
Daisy fitou Jaden, completamente fora de si. Tinha estado a conter-se para não dizer a Nathan que não o queria ali com eles, a pedido de Jaden. Mas os comentários descabidos do rapaz, a aliar-se ao facto de não se ter calado a sessão inteira, parecia ter desperto uma nova raiva nela.
- AH! E a melhor parte do filme foi quando a Alyson deixou cair o copo de água e todos pensaram que ela tinha feito xixi nas calças – gracejou Nathan, comendo as pipocas directamente do balde de cartão azul.


- É, essa foi definitivamente a parte mais engraçada do filme – murmurou Daisy, enojada ao ver o colega lamber a coca-cola como se fosse um cão a beber água.
- Mas mesmo assim… - prosseguiu Nathan, com uma expressão lamuriosa – queria ter ido ver o filme do porco e da vaca! Deve ser tão giro!
Jaden e Daisy trocaram dois olhares impacientes e ignoraram o amigo como haviam feito o caminho todo.
- Bem, vão-se sentando, eu vou à casa de banho – declarou Jaden, enquanto pousava o casaco numa cadeira da esplanada e os seus dois colegas se sentavam.
- Está bem… o que é que queres para comer? – perguntou Daisy, abrindo a carta do menu.
- Uma coisa qualquer… o que vocês comerem!
- Aha! Deixa isso comigo, vou aqui procurar um iogurte para ti! Ou então um gelado de iogurte! OU UM BOLO DE IOGURTE! – Nathan quase que amachucava a lista nas suas mãos ossudas, enquanto Daisy o fitava impacientemente.
- Nós vamos jantar, Nathan! Vais jantar iogurtes?
Mas Jaden não ouviu o resto da discussão, pois já se tinha posto a milhas daquela mesa. Entrou pelo restaurante e procurou uma casa de banho. Uma vez mais deu por si a pensar em Thomas. O rosto longo e pálido, os seus olhos apáticos causavam-lhe um arrepio imenso que lhe comprimiu a boca do estômago.


Mas os seus pensamentos foram interrompidos pelo toque do telemóvel. Era a sua mãe, pelo que Jaden se lembrou logo que lhe ficara de ligar assim que o filme acabasse.


- Estou, mãe… - atendeu, fechando os olhos, como se estivesse a esperar um sermão. Mas para seu gáudio, a sua voz serena e doce continuava igual.
- Então, filho. Como foi o cinema?
- Foi fixe… agora vim aqui a um restaurante jantar com os meus colegas.
Devido ao barulho que se fazia ouvir dentro do restaurante, Jaden viu-se obrigado a sair pela porta das traseiras, indo dar a um beco deserto. Olhou em redor. Encontravam-se caixotes do lixo a transbordar, ladeando muros velhos e com lascas de tinta a saírem. Os mesmos encontravam-se cobertos de graffiti já atenuados e não havia qualquer tipo de iluminação.
- Jaden? Estás… ouvir-me… Jad… - e subitamente a chamada caiu.


Jaden desligou e analisou aquele beco. Olhou para a porta de onde tinha saído, vendo-se tentado a voltar a lá entrar. Daisy e Nathan já deviam estar a dar por sua falta. Mas algo o impediu de tocar na maçaneta com a sua mão esquerda. O seu braço estacou por momentos, como se estivesse algo a imobilizá-lo. Olhou para a marca, e esta debatia-se contra a pele, como se estivesse a pulsar, e denotava um tom escarlate que fez com que Jaden sentisse uma ligeira sensação de desconforto.
E nesse preciso instante, um estrondo que se assemelhava ao de uma porta velha de ferro a ser fechada com muita força, irrompeu por trás de si, pelo que se virou num sobressalto. O coração começou a chocalhar contra o seu peito, e um calor descontrolado fazia-lhe o sangue subir à cabeça. De facto, atrás de si encontrava-se uma porta de aço ferrugento, com inúmeros graffiti a cobri-la quase por completo.
- Está aí alguém? – perguntou Jaden, a sua voz trémula a ressoar asperamente por todo o beco, vindo a confirmar que se encontrava completamente só.


Por um momento fugaz, voltou a pensar em regressar para o restaurante, mas sem êxito. Agora encontrava-se focado na porta ferrugenta que tinha acabado de se fechar com um estrondo. Aproximou-se, pegando na pega lascada de ferrugem que se soltou quando a sua mão lhe pousou por cima, e abriu-a. Os seus olhos arregalaram-se, e o seu coração pareceu debater-se num ápice ao ver o interior do que aquela porta selava. Numa fração de segundo, o único desejo que lhe aflorou no seu íntimo foi não estar ali, mas algo o puxava cada vez mais para dentro. A espiral no seu braço contorcia-se, enterrando-se na carne do braço, como uma lâmina.

20º Capítulo - A Face Oculta de Thomas



O Sol parecia estar cada vez mais a pique no céu, trazendo um ambiente morno mas ao mesmo tempo gélido à esplanada. Jaden encontrava-se agora encostado na sua cadeira, tranquilamente, a sentir o vento frio a fustigar-lhe o rosto. Por momentos olhou para os dois colegas, e ambos pareciam estar a fazer o mesmo que Jaden: nada. Tinha-se posto um silêncio profundo naquela mesa, apenas quebrado pelo som do tráfego que se estendia pela estrada fora, e pelo burburinho dos outros clientes presentes naquela esplanada.
- Está quase na hora da sessão de cinema… - relembrou Daisy, olhando para o seu relógio de pulso.
- É melhor irmos pagar as bebidas. Eu pago! – exclamou Nathan, pegando nos copos já vazios.
- Não! Que disparate! Eu pago!
- Oh, prontos. Tinha que vir o cliché: “Eu pago!”… “Ah não deixa estar eu pago!” - disse Nathan, abrindo e fechando a mão como se fosse um fantoche.


Jaden revirou os olhos e desencostou-se da sua cadeira.
- Olhem sabem que mais? Eu vou pagar. NÃO! Não digam nada! – vociferou, vendo que Daisy e Nathan se preparavam para protestar.
Levantou-se, não conseguindo conter um sorriso ligeiro, e encaminhou-se para o interior do café ao qual pertencia a esplanada. De súbito, o ambiente mudara, e o som dos carros a passar pela estrada e as conversas paralelas foram substituídas por mais vozes que faziam questão de se fazerem ouvir, ruídos de copos e garrafas e o som da máquina de café que não parava de fumegar vapor, inundando todo aquele espaço por uma ligeira nuvem que ofuscava a visão de Jaden. Quando finalmente conseguiu chegar ao bar, onde apenas se encontrava uma pessoa empoleirada, tirou uma nota da sua carteira e preparou-se para pagar.
- Bem… o senhor já bebeu muitos cafés hoje… não acha que já chega? Cafeína a mais faz mal!
O homem que se encontrava atrás do balcão sorria alegremente para a pessoa que se encontrava empoleirada, com quatro chávenas de café à sua frente. Levantou a cabeça, deixando mostrar a sua face. Jaden nem queria acreditar.
- Oiça lá, mas você tem alguma coisa a ver com o que eu bebo? – inquiriu Thomas, os seus olhos denotavam um brilho que Jaden nunca antes reparara, mas ao mesmo tempo encontravam-se mais profundos e escuros.


- Desculpe eu…
- O senhor até devia estar agradecido! Ganha mais dinheiro por eu beber cafés a mais… mas se quiser eu pago apenas um, já que a cafeína faz mal!
- Oh meu senhor, eu estava a brincar consigo! – o empregado começava a ficar extremamente nervoso, e tentava a todo o custo enfrentar o olhar de Thomas, mas este parecia intimida-lo de uma forma sobrenatural.


Mas mal se virou para trás, quando avistou Jaden, um sorriso enorme voltou a aflorar-lhe do rosto.
-Jaden! Olá! Não esperava ver-te aqui!
Por momentos, ficou imóvel a olhar para a sua cara sorridente, que outrora nem um sorriso esboçava para o empregado do balcão.
- Hum… eu… vim aqui com uns colegas. Olhe, desculpe! – rapidamente se dirigiu ao empregado, que se preparava para atender outros clientes. – Queria pagar!
Deu o dinheiro ao homem, que olhava de esguelha para Thomas, e retirou-se rapidamente, parecendo até fazer uma vénia de gratidão por Jaden interromper aquele momento tão desagradável por que estava a passar.
- Escusavas de ser assim para o homem… - disse Jaden, com um tom de repulsa na sua voz.
- Hum… é que sabes, quando eu bebo muito café fico assim.
- Então não bebas, simplesmente.


E dito isto, encaminhou-se para a saída, certificando-se de que Thomas não o seguia. Na verdade, este ficara no mesmo sítio onde se encontrava antes, a ver Jaden afastar-se com uma expressão desiludida, mas ao mesmo tempo irritada, tais eram os seus olhos entreabertos e os lábios cerrados.
Quando saiu, já Daisy se encontrava de pé com a mala ao ombro, e Nathan com as mãos nos bolsos, ambos com expressões impacientes.
- Então? Já está quase na hora… - proferiu Daisy, levantando os braços e analisando a expressão ausente de Jaden. – Está tudo bem?
- Huh? Ah… sim, sim… está. Vamos embora…


Olhou uma vez mais para a entrada do café. Por mais que tentasse, não conseguia esconder no seu íntimo a ligeira sensação de pudor que tivera ao ver Thomas tratar uma pessoa daquela maneira. Embora parecesse mostrar o contrário, Jaden considerava-o simpático e compreensivo pela maneira como o apoiara depois daquele incidente. Mas agora achava-o frio e, de certo modo, mal-educado. Mas deixou-se de pensamentos sobre ele, e tentou acompanhar o passo acelerado de Daisy e Nathan que se apressavam para o cinema, que já se encontrava apinhado de gente.

19º Capítulo - O Empregado e o Iogurte




Na tarde seguinte de sábado, o sol pareceu dar sinais de vida, espreitando por detrás de algumas nuvens que ainda se encontravam escuras e cinzentas. Jaden acordara excecionalmente bem-disposto naquele dia, o que o fez encarar os acontecimentos anteriormente sucedidos de uma forma mais otimista. Até porque o rapaz que Jaden agredira, segundo Thomas, já se encontrava bem, o que lhe tirou um grande peso de cima dos ombros. Mas apesar da sensação de alívio, ainda não conseguia parar de pensar numa questão que parecia óbvia mas simultaneamente complexa: Como é que terá conseguido empurrar o colega para tão longe?
Dirigiu-se para o ponto de encontro que ele, Daisy (e Nathan) combinaram: uma esplanada agradável relativamente perto do cinema. Jaden sentou-se numa mesa à espera dos colegas, pegando no menu onde iria escolher uma bebida para se entreter pela espera que parecia dar indícios de ser muito longa, já que chegara tão cedo. Quando tirou os olhos da lista infindável de batidos e sumos, olhou em redor. A estrada que se estendia mesmo ao pé da esplanada encontrava-se agitada, assim como o resto da rua que circundava aquele lugar. Mas quando menos esperava, uma rapariga loira, de olhos brilhantemente azuis e uma expressão vazia, sentou-se ao pé de si, com um sorriso afável esboçado no seu rosto estreito.
- Olá, Daisy! – cumprimentou Jaden, perplexo.



- Não estava combinado encontrarmo-nos aqui? Qual é a surpresa? – inquiriu Daisy, soltando uma pequena gargalhada.
- Nada, nada! Apenas pensei que viesses mais tarde!
- Eu não me adiantei… o Nathan é que está atrasado. Oh, fala-se no diabo e ele aparece!
Nathan encaminhava-se para a mesa onde Daisy e Nathan se encontravam, com uma expressão satisfeita por ver os amigos, com o seu passo atropelado e instável.
- Olá malta! Espero não me ter atrasado!
- Por acaso…
- Não faz mal, Nathan! Senta-se! – interrompeu Jaden, com um tom de voz jovial apontando para uma cadeira vazia.



Nathan sentou-se e respirou fundo, olhando em redor para observar o exterior do bar, como se fosse a primeira vez que estivesse ali. Talvez até fosse, tal como Jaden.
- Querem alguma coisa para beber? – um empregado surgiu do nada, fazendo Daisy dar um pulinho da sua cadeira.
- Huh… sim. Quero um sumo…
- LIGHT! – vociferou Nathan, interrompendo Daisy, pelo que esta suspirou e voltou a encostar-se à cadeira.
- Eu quero uma cola! – pediu Jaden, com os dedos entrelaçados uns nos outros.
- E eu um iogurte… de morango!
- Vai-me desculpar, mas não temos iogurtes!
Nathan fez uma das suas expressões horrorizadas, pelo que Daisy e Jaden abafaram uma gargalhada genuína.
- NÃO TÊM IOGURTES? Mas que raio de espelunca são vocês?
- Pedimos desculpa, mas aqui só vendemos…
- Sim, sim… agora venha com desculpas… Traga-me um… sumo de laranja, e tem muita sorte por eu não lhe pedir o livro de reclamações!
- Oh Nathan! Controla-te, meu! – exclamou Jaden, num misto de repreensão e gozo.



Pouco tempo depois, o empregado surgiu novamente, com uma bandeja que trazia os pedidos feitos pelos três. Nathan olhou desdenhosamente para o seu sumo de laranja, como se estivesse estragado. Mexeu com a palhinha, emitindo um som com a boca que se assemelhou a algo como: “Tcha”.
- É lamentável não haver iogurtes neste lugar. Lamentável!



- Oh Nathan, bebe lá o teu sumo e cala-te com o iogurte! – disse Jaden, sorrindo ligeiramente, enquanto abria a sua lata de cola.
Nathan sugou ruidosamente o seu sumo, deixando Daisy cada vez mais incomodada com a sua presença. Mas aquele momento descontraído, na esplanada, com o sol a bater-lhes na cara, não convidava a exaltações. Por isso, Daisy limitou-se a lançar um olhar impaciente a Jaden. Mas este nem sequer reparou. Havia outra coisa que lhe usurpara a atenção.
Ao fundo da rua, meio escondido por uma carrinha Chevrolet, estava Thomas, mais conhecido como ‘o rapaz estranho’. Jaden beliscou a pele do braço e esfregou energeticamente os olhos. Mas ele continuava lá. Podia distingui-lo na perfeição, as suas já habituais calças de sarja beije e o colar espanta-espíritos que brilhava tenuemente com os reflexos do sol. Embora àquela distância fosse difícil distinguir feições, Jaden podia jurar que o rapaz mantinha o seu olhar glacial e interesseiro.



- Terra chama Jaden! – brincou Daisy, desencostando-se da cadeira para olhar melhor o amigo.
Jaden desviou o olhar para os colegas, que o observavam, animados. Aparentemente, não tinham dado pela presença de Thomas. Tinha sido só ele.
- E depois eu é que sou o lunático… - murmurou Nathan que, apesar de estar a sorrir, estava levemente revoltado.
Jaden riu-se superficialmente e apressou-se a beber a Coca-Cola, visto que era o único que ainda não a tinha acabado.

18º Capítulo – O Sacrifício


- O quê? – a voz de Daisy do outro lado da linha parecia-se com a de uma pessoa que tinha acabado de receber a notícia mais bombástica e inesperada de sempre. Talvez fosse mesmo.
- Sim… o Nathan, pelos vistos, também vai… - Jaden encontrava-se deitado na cama, com o telefone no altifalante, enquanto olhava fixamente para o seu braço esquerdo.
- Mas eu não o convidei! Aliás, nem sequer lhe falei do combinado!
- Pois, mas seria uma grande desfeita dizer-lhe para não vir…



- Uma grande desfeita é tê-lo de atrelado connosco, Jaden! – agora o tom de voz de Daisy passara de surpreendido para irritado.
- Ouve… - disse Jaden, levantando-se e pegando no telemóvel, para o colocar junto do seu ouvido – Ele é um tipo fixe!
- Eu sei que ele é fixe, Jaden, mas é um pouco…
- Lunático? – sugeriu, abafando uma gargalhada.



- Eu não diria tanto… coitado. Mas ele é inoportuno! Ainda por cima quer ir ver um filme para crianças?!
- A escolha do filme é irrelevante, se ele vier connosco temos de escolher um filme que todos gostemos! Então… ele vem, ou não? É que eu tenho de ir jantar, não posso ficar a falar.
Daisy permaneceu em silêncio durante alguns longos segundos, pelo que Jaden pensou que a chamada tinha caído. Mas quando estava prestes a desencostar o telemóvel do ouvido para se certificar, a colega falou, com uma voz tremida e reticente.
- Pode ser…
- Ótimo… até amanhã! Beijinhos.
Desligou o telefone e atirou-o para meio dos cobertores espessos da sua cama, encaminhando-se para a cozinha, onde já tinha os seus pais à sua espera há imenso tempo. Por instantes pensou no que Thomas lhe dissera. Estaria aquele rapaz realmente bem? Afinal, a pancada tinha foi forte, pode ter sofrido lesões graves, pensou para com os seus botões. E quando deu por si, estava outra vez no pátio a ver o rapaz encostado à parede, rodeado de pessoas a tentarem reanimá-lo. Mas abandonou rapidamente os seus pensamentos, face às expressões desconfiadas dos seus pais, e às trocas de olhares que estes fizeram quando o chamaram.
- Está tudo bem, Jey? – perguntou o seu pai, intrigado.
- Sim está… tudo ótimo!
- Tens a certeza? – perguntou, por sua vez, a mãe, de olhos arregalados, baixando o copo de sumo de laranja que entretanto estava a beber.
- Sim, mãe! Está tudo bem…


A noite achava-se mais gélida e escura do que alguma vez estivera. O negrume que cobria o palácio de Melih Kibar encontrava-se mais denso, desenhando arabescos que trepavam pelas torres altas e sinuosas que se erguiam em direção ao céu tempestuoso. Uma trovoada vermelha eclodiu, ao longe, embora o som se ouvisse tão claramente como se estivesse mesmo ali, junto dos prisioneiros que caminhavam hesitantemente em direção ao palácio.
No interior, o cenário era quase idêntico. A escuridão reinava tão majestosamente como a mulher que se encontrava sentada no seu trono colossal. Batia com os seus longos dedos brancos contra o braço do trono enquanto olhava em frente, vendo um dos prisioneiros chegar.



- Majestade! É hora do interrogatório! – disse educadamente um servo, que rapidamente se curvou diante da esbelta figura que se acabava de levantar.
Não disse nem uma palavra, e desceu do pedestal, olhando para um homem com cabelo grisalho, denotando uma expressão cansada e, de certo modo, resignada. Esboçou um sorriso quase agradável, os seus olhos vermelhos da cor do sangue a brilharem à luz do luar que transpunha as janelas.
- Tomámos conhecimento – começou Radiah a falar, a sua voz determinada perfurava a escuridão daquele salão, sobressaltando todos os presentes – que um dos… da vossa raça atravessou o portal, para o Mundo Paralelo.



Aquelas últimas palavras inquietaram bruscamente os servos que se encontravam a observar o interrogatório por cima do ombro.
Agachou-se diante do prisioneiro, cujo peito arfava tão convulsivamente que o coração quase lhe saia pela boca.
- Tu sabes de alguma coisa?
- Não… - respondeu, com uma voz trémula e quase inaudível.
Um grito ecoou por todo o salão, e um jato de luz irrompeu da mão de Radiah, que atingiu o homem, fazendo-o curvar-se de dor.
- NÃO! Por favor! – e outro grito entoou sonoramente.



- MENTIROSO! – a voz de Radiah intensificou-se, fazendo os seus servos também curvarem-se, receando olhá-la nos olhos, tal era a sua ira. – Eu sei que ele foi à procura do Traham Suryah!
- Mas eu não sei de nada! Por favor! – o homem emitiu outro esgar de dor, as lágrimas a escorrerem-lhe pela face suja de sangue incrustado.
- Então já não serás muito útil! – o seu tom de voz diminuiu novamente, mudando agora para um quase afável e melífluo. – Matem-no!
- NÃO! NÃOOOOOO!
A mulher virou-lhe costas e encaminhou-se para o seu trono, observando um servo a dirigir-se até ao prisioneiro, e a trespassar-lhe a barriga com uma espada coberta de chamas. Agora já não se ouviam gritos, mas sim um som de quem sofria em silêncio, sentindo a lâmina escaldante a mutilar-lhe o abdómen, o sangue a brotar-lhe infinitamente, sujando o chão de um líquido vermelho da cor dos olhos da mulher, que se achava agora tranquilamente instalada no seu trono, a sorrir ligeiramente enquanto observava a morte lenta e dolorosa do prisioneiro.



17º Capítulo - A Proposta


Jaden passou o resto do dia intrigado com o que Daisy supostamente lhe queria propor. A sua expressão de desilusão quando Nathan a interrompeu dava para notar perfeitamente que o assunto parecia ser importante. Mas para sua deceção, a colega andou desaparecida o resto do dia, apenas a viu com as suas duas amigas a conversar alegremente, o que desencorajou Jaden de lhe ir perguntar o que quer que fosse.
- Então, Jaden? – uma voz irrompeu nos seus ouvidos, e quase que podia jurar que até conseguia sentir a sua respiração junto de si, mas quando olhou viu que Thomas se encontrava a pelo menos dois metros de distância. – Estás com um ar ausente!
Por instantes, Jaden ficou petrificado a olhar para o seu olhar que, naquele dia se mostrava menos apático e profundo, mas simplesmente normal.
- Não… estou bem.
Thomas sorriu simpaticamente.
- Ainda estás a pensar naquele acidente não estás?



- Huh…
- Eu sei que estás! Mas deixa-me desde já dizer-te que não te vai adiantar de nada. O teu colega está bem! Parece que apenas tem alguns ‘arranhões’, nada mais.
Jaden suspirou, os seus olhos grandes a brilharem à luz soturna do sol de outono, tal era a sua sensação de alívio.
- Ao menos isso… faz-me sentir muito melhor… bem eu… vou almoçar!



- Está bem… então vemo-nos por aí! – Thomas acenou timidamente e o seu sorriso desapareceu, dando lugar à sua habitual expressão sombria e apática.
Jaden encaminhou-se para o refeitório e procurou uma mesa longe da multidão que se mostrava ainda mais densa do que nos outros dias. Pousou o seu tabuleiro que suportava o seu prato com uma perna de frango e batatas fritas. Por muita fome que tivesse, o nó no seu estômago continuava a provocar-lhe um aperto enorme no peito. Daisy veio sentar-se ao seu lado. Tinha o tabuleiro carregado daquilo a que Nathan chamaria comida de cabrito: uma salada com todos os vegetais que Jaden conhecia e duas maçãs, em vez da apetitosa mousse de chocolate.
- Sabes no que estava a pensar? – perguntou ela, temperando a salada com vinagre.
- Diz – disse Jaden, com a boca atafulhada de lascas de frango.
Daisy levou a boca uma grande garfada de legumes e, depois de engolir tudo num tempo recorde, disse:
- Irmos ao cinema…



- Cinema? Acho uma óptima ideia! – disse, animado, Nathan, surgindo de repente, como uma assombração.
Daisy deu um gritinho, deixando cair a nova garfada de salada que se preparava para levar à boca. Salpicou vinagre por todo o lado. Furiosa, limpou-se ao guardanapo que Jaden trouxera para si. Pegou abruptamente no tabuleiro e foi-se embora, desaparecendo rapidamente por entre a multidão que se dissipava.
- O que é que tu fizeste? – exclamou Nathan olhando para o lugar onde há tão pouco tempo estivera Daisy.
Jaden ignorou, bebendo calmamente o seu sumo de laranja natural. Nathan sentou-se em frente a ele, brincando com a comida. De súbito, abriu-se-lhe um sorriso no rosto sardento e sugeriu, entusiasticamente:
- Podíamos ir ver aquele novo filme de animação… - (Jaden franziu o sobrolho) – aquele com o porco e a vaca!



- Ah… acho que a Daisy preferiria uma comédia…
Jaden acabou de comer o frango e atacou a mousse de chocolate. Observou atentamente a coxia onde as cozinheiras serviam a comida. Com sorte, não estava lá ninguém e conseguiria roubar mais uma sobremesa.
- O meu primo foi vê-lo na semana passada e adorou! – protestou Nathan.
- Quantos anos tem o teu primo? – Perguntou Jaden, embora já imaginasse a resposta.



- Oito… mas é muito adulto para a idade que tem!
Jaden deu uma gargalhada. A infantilidade do amigo podia irritar a Daisy, mas não tinha, definitivamente, o mesmo efeito nele.
- Está bem, está bem… Olha, vou-me embora.
- Bolas! Outro a ir-se embora precocemente… - grasnou Nathan, batendo na mesa com o punho. – Então e a ida ao cinema?
- Fala com a Daisy, ela é que combinou tudo. Até amanhã… - Jaden deu uma palmada no ombro estreito de Nathan e foi-se embora, colocando o seu capuz para se proteger da chuva que entretanto começava a intensificar-se cada vez mais lá fora.

16º Capítulo - Uma Tempestade de Culpa


As primeiras chuvas densas começaram a assolar Coast City inteira. As praias paradisíacas tão adoradas pelos inúmeros turistas que passavam na cidade de ano a ano, iam-se esvaziando, vendo-se apenas a areia escurecida pela chuva e o mar rodeado de névoa e fosco pelo reflexo das nuvens cinzentas que iam serpenteando os céus.



Dois rapazes encontravam-se num confronto violento, sobressaltando todas as pessoas presentes num pátio ladeado por muros velhos e de pedra húmida. Uns braços carnudos e vermelhos empurraram o peito de um jovem, impulsionando-o contra uma parede bem longe daquele lugar. O seu corpo jazia, encostado à parede, rodeado por uma poça de sangue. Foi então que Jaden abriu os olhos num sobressalto. Encontrava-se encostado num sofá junto da janela, a ver a chuva embater intensamente no vidro, causando um som um tanto ou quanto tranquilizante. Olhou em redor. A sala de estar encontrava-se vazia e escura, embora fossem 16:00H da tarde. Uma primeira trovoada eclodiu no céu, iluminando os prédios com um flash prateado, como se fosse uma máquina fotográfica enorme. Durante alguns instantes, vislumbrou a espiral esculpida no seu antebraço, rodeada por uma mancha azulada que se assemelhava a uma nódoa negra. A saliência que se avultava na sua pele branca encontrava-se ainda mais avermelhada, como se tivesse sido espezinhada.



- Estavas a dormir, filho? – perguntou uma voz delicada e graciosa, enquanto entrava em casa com sacos imensos de compras do supermercado.
- Não, mãe… estava só a… - Jaden esfregou os olhos enquanto se levantava do sofá – Foste às compras?
- Sim fui! Mas foi muito difícil cá chegar… está a chover tanto. Já não se percebe este tempo… um dia faz sol e um calor insuportável, e noutro faz esta chuva horrorosa. Uma pessoa nem sabe o que há-de vestir…
- Sinceramente, acho que prefiro assim…
A mãe, notando o tom de voz trémulo na voz de Jaden, colocou as mãos na cintura esboçando um sorriso leve.
- Estiveste mesmo a dormir, não estiveste?
- Oh mãe, não me chateies…



- Onde é que tu vais, meu menino? – indagou a mãe, autoritariamente, quando reparou que Jaden já se encontrava no corredor a caminho do seu quarto. – Vem cá ajudar-me…
- Não posso… tenho de estudar! – respondeu Jaden, continuando a andar num passo lento e atribulado.
Mal chegou ao quarto estendeu-se na cama e ficou a olhar para o teto. A chuva lá fora parecia não cessar, sacudindo as janelas com salpicos pesados, seguidos de uma trovoada intensa.
Levou as duas mãos ao rosto, suspirando de desespero. Agora, uma pergunta evidenciava-se na sua mente: Como estaria o rapaz depois daquele impacto? Estaria são? Gravemente ferido? Ou, se calhar, até estaria morto! Nesse momento Jaden teve novamente um vislumbre do seu corpo a jazer encostado a uma parede de pedra espessa, rodeado por pessoas. Foi então que caiu num sono profundo, deixando cair os braços. A marca debatia-se contra a pele de Jaden, e a mancha retorcia-se ligeiramente.



Na manhã seguinte, o céu encontrava-se igualmente escuro, coberto por nuvens cinzento-escuro que ameaçavam mais uma tempestade incessante para aquele dia. Jaden abriu os olhos. Embora fossem 7:00H da manhã, o quarto encontrava-se mergulhado num negrume que o obrigou a acender o candeeiro da mesa-de-cabeceira. Uma vez mais, o seu estômago parecia estar a fazer uma birra para não deixar entrar qualquer tipo de alimento, criando um nó que lhe contraia a barriga, como se estivesse prestes a vomitar.
Arranjou-se o mais depressa possível para não ter de encarar os seus pais a bombardearem-no com perguntas e mais perguntas, ora sobre a marca, ora sobre uma mancha que se salientava no seu antebraço esquerdo, ou ainda sobre uma espécie de cicatriz queloide avermelhada a sobressair-se na pele.
Mal chegou à universidade, tentou procurar Nathan e Daisy. De súbito chegara à conclusão que estar sozinho não era a melhor solução para conseguir esquecer o dia anterior. E para sua sorte, um rapaz de cabelos ruivos descompostos com olhos castanhos-claros e sardas a pigmentarem-lhe o rosto e uma rapariga loira, com um rosto delicado e uns olhos azuis cristalinos encontravam-se a conversar calmamente numa mesa do refeitório.
- Jaden! Olá! – cumprimentou Daisy, sorrindo alegremente.
- Oi… posso sentar-me aqui?
- Claro que….
- Claro que sim, Jaden! – interrompeu Nathan, como se estivesse à espera de arranjar um motivo para interromper Daisy.



- Como te sentes? – perguntou Daisy, seguindo o movimento de Jaden a sentar-se com os seus olhos lacrimejantes.
- Bem…
- Olha eu estava aqui a pensar e…



- OH MEU DEUS! Olhem para as horas! – grasnou Nathan, olhando para o relógio com os olhos arregalados.
Daisy suspirou, e juntamente com os dois rapazes, pegou na sua mala e seguiu-os com uma expressão desiludida. Jaden olhou para trás, reparando que a colega lhe queria dizer alguma coisa, e abrandou o passo para se poder juntar a ela.
- Querias dizer-me alguma coisa?
- Esquece… pode esperar! – disse Daisy, quase num sussurro, apertando os seus livros nos seus braços e dirigindo-se mais rapidamente para a sala onde iam ter a primeira aula do dia.

15º Capítulo - Thomas vs Nathan


Jaden e Nathan saíram da casa de banho, deparando-se com Daisy que entretanto se desencostara à parede num ápice, como se estivesse à espera daquele momento. A sua expressão mantinha-se preocupada, exatamente como há minutos atrás, pelo que Jaden adiantou:
- Eu estou bem!
- A sério, fiquei preocupada! Não é normal agires daquela forma!
- Eu sei, mas vamos tentar não falar mais disso, OK?



Sorriu e esfregou-lhe o braço gentilmente, fazendo Daisy esboçar também um sorriso doce, os seus olhos azuis a brilhar à luz do sol de outono que perfurava os vidros das janelas do corredor.
- Bem, se não se importam… eu vou buscar um…
- Iogurte? – completaram Jaden e Daisy, fazendo Nathan dar um pequeno pulinho de susto, olhando para os dois com uma expressão aterrorizada.
- Como é que vocês sabiam? COMO? Oh meu Deus, estarei a ficar lunático? Louco? – e continuou a sussurrar, horrorizado, pelo corredor, roendo as unhas e olhando para todos os lados como se tivesse medo até da própria sombra.
- Acho que alguém vai ter pesadelos esta noite… - disse Daisy, permanecendo a olhar para Nathan a andar desajeitadamente pelo corredor.
Jaden sorriu e colocou a sua mala ao ombro, enquanto Daisy se afastava, indo ter com a sua colega que a esperava impacientemente. Virou-se para trás e deparou-se com Thomas, que se encontrava a poucos centímetros de distância, olhando Jaden com o seu olhar um tanto ou quanto cobiçoso. Mas rapidamente denotou um sorriso ligeiro e cumprimentou-o graciosamente.
- Estás bem? – perguntou Thomas, olhando Jaden nos olhos. – Vi o que se passou há bocado…
- Pois… quem é que não viu? A esta hora até já deve estar na Internet – Jaden tentava evitar o olhar de Thomas a todo o custo, contemplando outros pontos daquele corredor, mas por mais que tentasse, o azul intenso dos olhos do rapaz fixavam-no incansavelmente.



Thomas sorriu ligeiramente, enquanto punha as mãos nos bolsos do seu casaco comprido e velho.
- Se isto te faz sentir melhor… eu estou do teu lado! Não tiveste culpa! Foi aquele rapaz que te… provocou. Ele não o devia ter feito.



Jaden sorriu, não conseguindo conter uma certa consideração por Thomas. Pela primeira vez sentia-se agradavelmente bem na sua presença. Este, Nathan e Daisy pareciam ser os únicos a acreditar nele. Embora os sentimentos de culpa o continuassem a atordoar, ao ouvir aquele apoio dos amigos – e de Thomas – sentiu-se ligeiramente aliviado e, de certa forma, com forças para encarar os dias seguintes que iam, com toda a certeza, ser difíceis.
Os dois rapazes encaminharam-se para o pátio da Universidade, num passo vagaroso, enquanto conversavam sobre o acontecimento daquele dia. Thomas mostrava-se inequivocamente atencioso a ouvir as palavras de Jaden, como se não houvesse mais nada à sua volta. O seu olhar quase incolor focava-se no azul-cinza de Jaden de uma forma invulgar, desconfortando-o um pouco.
- Uma vez também perdi a cabeça com um colega meu… toda a gente ficou contra mim porque ele se fez de vítima a fingir que estava coxo… até que um dia largou as muletas com uma rapidez que toda a gente se virou contra ele e me veio pedir desculpas…
Riram-se em conjunto, continuando a caminhar pelo pátio. Ao longe, Jaden avistou Nathan, a beber um iogurte aparentemente de morango, tal era o seu sorriso de satisfação como se estivesse a comer um banquete. Empunhava ainda um bloco de notas e uma caneta com uma luzinha intermitente e uma buzina que tocava cada vez que a caneta raspava o papel.
Subitamente, o olhar de Nathan prendeu-se em Jaden, que conversava com o rapaz estranho, como era agora tão vulgarmente apelidado. Desconfiado, dirigiu-se ao local onde os dois rapazes conversavam amigavelmente. Dirigiu um olhar infantilmente maldoso ao rapaz, que lhe respondeu com uma testa ligeiramente franzida. Por sua vez, Nathan cruzou teimosamente os braços sobre o peito e colocou uma expressão altiva e mandona.
- Vem falar comigo, Jaden – solicitou ele, dando um ênfase infantil à palavra “comigo”.



Embora Nathan tivesse supostamente feito um pedido, puxou-lhe a t-shirt em vez de esperar que o amigo andasse pelo seu próprio pé. Já este, exasperado, soltou a t-shirt e bufou. Já estava habituado aos exageros de Nathan, mas por vezes esquecia-se de como ele conseguia ser inoportuno.
- Porque é que estás a falar com aquele tipo? – questionou Nathan, apontando o indicador denunciante na direção do rapaz.
Jaden suspirou pela segunda vez naqueles últimos minutos. O colega conseguia ser bastante controlador, característica com a qual nunca lidara muito bem.
Já Nathan espreitava indiscretamente o estranho jovem, que esperava encostado ao muro. Parecia bastante ansioso, o pé esquerdo a raspar com impaciência a relva, como um potro em fúria. Os dedos contorciam-se incessantemente arranhando as calças de sarja bege já gastas. Apesar dos metros que os separavam, Nathan conseguia avaliar bem a sua expressão. Parecia estar em transe. Não pestanejava e mantinha a cara tão imóvel como um bloco de cimento.



- O que é que tu tens contra ele? Ele até é simpático depois de o conhecermos…
- E vais-me dizer que o conseguiste conhecer num espaço de minutos? – indagou Nathan, com o pé a bater no chão constantemente.
- Olha ele está-me a apoiar! Ele é o único que me apoia nesta situação… para além de ti e da Daisy! – proferiu Jaden, impacientemente, ao reparar na cara chocada de Nathan. – Eu já vou ter contigo! Deixa-me só despedir-me do Thomas…
- Ah, é assim que ele se chama! Um nome vulgar para disfarçar a sua faceta maléfica! Eu bem conheço esses vilões dos filmes, infiltram-se na juventude e depois vem-se a descobrir que são velhos de 50 anos! Pois… eu sei muito bem como é!

14º Capítulo - Sangue, Raiva e Ofensas




Jaden permaneceu encostado à árvore durante alguns segundos, o seu peito a arfar convulsivamente. Sentia os olhos de todos os alunos da Universidade postos em si, enquanto olhava para o rapaz que entretanto já se encontrava rodeado pelos amigos. O seu corpo parecia jazer, imóvel, enquanto os companheiros o tentavam reanimar, infrutiferamente. Estaria morto?
O suor escorria-lhe pela testa que nem riachos numa torrente incansável. O espectro de cores ia desaparecendo dos seus olhos, e uma sensação de calma ia-lhe suturando o coração. Quase que nem ouvia ninguém à sua volta, nem sequer os mais desagradáveis comentários a seu respeito. O ardor nos seus braços ia diminuindo, e a fúria que outrora sentia ia-se desvanecendo num tumulto de sentimentos de culpa.
Ao longe, ainda encostado a um poste, como se nem tivesse dado conta do sucedido, encontrava-se Thomas, agora com a revista fechada. Olhava Jaden com um ligeiro sorriso na cara, como se tivesse gostado daquele confronto. Mas não demorou muito tempo até sair de onde se encontrava e perfurar a multidão, apressado, e encaminhando-se para o interior da Universidade.
Até que Daisy e Nathan se dirigiram até si, num passo acelerado, ambos com uma expressão de preocupação no rosto, embora Daisy se demonstrasse mais alarmada do que o colega. Este parecia até abafar um riso infantil ao olhar para o rapaz estendido no chão.
- Então meu, estás bem? – indagou Nathan, colocando amigavelmente a mão no ombro de Jaden.



- Estou – murmurou ele, ajeitando a roupa que estava amarrotada e repuxada em vários pontos.
Daisy, que o estava a ajudar a compor-se, fez uma careta reprovadora. Jaden reconheceu nela a expressão que a sua mãe ostentava quando ele fazia alguma asneira. De súbito, sentiu que tinha 10 anos e estava prestes a ser repreendido por ela. Indubitavelmente, foi o que Daisy se encarregou de fazer.
- Francamente! Nem pareces tu a andar à bulha com outro rapaz! O que é que te deu?
Jaden ignorou, fingindo alinhar o cabelo. Nathan pôs-se a observar a massa de alunos que agora dispersavam em várias direcções. Avistou a rapariga ruiva que acompanhava Daisy quando ele a interpelara. Sentiu-se estupidamente intimidado e rodou 90 graus sobre os calcanhares, de modo a ficar parcialmente oculto por Jaden. Já este levava a mão ao nariz para ver se estava a sangrar. Obteve a sua resposta quando Daisy deu um gritinho.
- Estás a sangrar! – guinchou.



Jaden sentiu um líquido morno e vermelho-escuro escolher-lhe pelo dedo. Aceitou de bom grado o lenço que Nathan lhe estendeu e enxugou o nariz. Sentia-o arder com ligeireza. De imediato, o branco do lenço tornou-se encarnado.
- Preciso de ir à casa de banho – disse.
- E nós vamos contigo! – informou prontamente Daisy.
Ambos encaminharam-se rapidamente para dentro do edifício, com Nathan a caminhar atrás deles como um pequeno cachorro obediente.



- Mas porque é que te passaste daquela maneira?
Nathan encontrava-se encostado à parede de azulejos da casa de banho, enquanto via Jaden lavar a cara com água fria. Embora denotasse alguma satisfação por ter visto o rapaz que o provocara estendido no chão, não deixava de ficar surpreendido com a atitude de Jaden.
- Não sei… foi tudo tão estranho…
- Estranho?
- Sim… - Jaden tinha a ligeira sensação de que o espectro de cores que, nem há 20 minutos lhe tapara a visão, permanecia a eclipsar os seus olhos, levando outra demão de água ao seu rosto.
- Não estou a perceber… - disse Nathan, com o sobrolho franzido e com a boca torta, os seus olhos castanhos-escuros a apontar para o lavatório.



- Eu por mais que quisesse manter a calma e segurar-me, não conseguia! Senti uma raiva dentro de mim que me fez fazer aquilo ao gajo… não percebo.
O peito de Nathan começou a arfar, como se estivesse com medo de estar na presença de Jaden.
- Então quer dizer que… naquele dia… eu estive prestes a rachar uma parede com a minha própria cabeça?
Jaden não conseguiu conter um riso ao ouvir aquelas palavras de Nathan. O seu receio genuíno fizera-lhe passar uma visão à cabeça. Se já se sentia culpado por agredir alguém que quase não conhecia, quanto mais um amigo de longa data?
- Achas mesmo, Nathan? – inquiriu Jaden, limpando a cara com papel higiénico. – Desta vez foi diferente. Ele… não sei ele… ele ofendeu a minha mãe! Disse-me, indiretamente, que ela não merecia o cargo que exercia na empresa do seu pai. Aquilo deu-me uma raiva que nem sabes…



- Mas vocês conheciam-se? – perguntou Nathan, pela primeira vez, a sua expressão mantinha-se séria, sem nenhum risinho abafado.
- De vista… ele sempre me provocou, desde os tempos no Liceu. Mas sempre o ignorei! Nunca lhe dei importância… mas desta vez…



Jaden respirou fundo, apoiando-se no lavatório. Fechou os olhos, e por segundos vislumbrou os seus braços, quentes, a empurrarem o peito colega para bem longe da árvore onde se encontravam. Sentia-se fora de si naquela altura, como se nem estivesse a agir de forma racional. Os seus braços pareceram mover-se mecanicamente, e o fogo que os percorreu fê-lo abrir os olhos. Durante instantes reviveu todo aquele acontecimento ocorrido haviam minutos. Como seria aquilo possível? Como é que conseguiu lançar o rapaz para longe e pô-lo inconsciente? Algo inexplicável… um Força inexplicável?