38º Capítulo - Os Quatro Dons


Passadas quase duas horas, Jaden notou que a momento do seu encontro na floresta com Anon se aproximava cada vez mais. Olhou para o relógio, embora já soubesse as horas, e fingiu grande choque:
- Céus! Já são estas horas?
- O que é que tem? – perguntou Daisy, confusa.
- Tenho de… ir ter com o meu pai ao trabalho. Fiquei de lhe entregar uma coisa que ele precisa.
- Se quiseres eu vou contigo, depois podemos ir lanchar juntos à Pizzaria!
- Desculpa amor, não dá. Depois tenho de ir ter com a minha mãe, ela quer que eu esteja em casa cedo para a ajudar.
Daisy denotou uma expressão desiludida, mas disfarçou e mostrou-se compreensiva, pelo que Jaden respirou de alívio. Não queria dar demasiadas explicações à namorada, pois mais tarde ou mais cedo ela iria desconfiar.
- Não faz mal… vamos ter mais oportunidades. Vai lá, então.
Depois de dar um beijo rápido à namorada, Jaden saiu da universidade a passo acelerado. Por muito que achasse absurdo continuar a encontrar-se com Anon, algo no seu íntimo o obrigava a ir, como se houvesse uma ínfima vontade, bem no fundo do seu coração, de receber mais explicações. E pelo que soubera, nessa tarde ia ficar a saber ainda mais.
Na floresta estendia-se um nevoeiro gelado que fizera Jaden estremecer. O caminho ficou desvanecido e um vento cortante penetrou na sua roupa.
- Anon? – chamou Jaden.


E nesse momento, por entre a neblina, surgiu Anon, com a mesma roupa que a noite anterior, sem nem mais nem menos camadas.
- Como é que consegues estar vestido assim? Já viste o frio que está? Temos de começar a encontrarmo-nos noutro sítio.
- Frio? Depois habituas-te. O nosso corpo foi feito para se adaptar às circunstâncias… se o disciplinares, deixas de sentir frio.
- Fala por ti… - resmungou Jaden, esfregando os braços freneticamente.
Anon andou em direção a uma árvore e encostou-se a ela, tal e qual como no dia anterior. Cruzou os braços e começou a falar.
- Antes de começarmos queria pedir-te uma coisa, Jaden.
- O que é que vem daí?
- A partir de agora começa a contar-me todas as coisas peculiares que te aconteçam… comportamentos estranhos que tenhas, sensações invulgares… tudo. Ok?
Jaden hesitou durante alguns momentos. Lembrou-se do sonho que tivera nessa noite quase que instantaneamente, e embora achasse completamente absurdo, decidiu contar. Já lá ia o tempo em que guardava tudo para si mesmo.
- Bem… posso começar a contar-te já hoje.
- O que é que se passou…?


- Bem… hoje à noite tive um sonho um pouco esquisito. Provavelmente não deve significar nada mas já que me pediste para te contar tudo… Sonhei que estava em minha casa e de repente aparece-me um homem atrás de mim. Um homem que eu nunca vi na vida…
- Como é que ele era? – perguntou Anon, os seus olhos azuis a mirar Jaden de uma forma que o incomodara imenso.
- Era… velho, magro, tinha uma pele escura e usava roupas muito antigas.
Anon arregalou os olhos e ergueu-se durante alguns segundos, como se tivesse recebido uma notícia chocante.
- Como é que é possível? Ainda é muito cedo para o conheceres… - disse Anon, parecendo mais que estava a falar para si próprio do que para Jaden.
- O que foi?


- Hum? Nada… bem, é melhor não dares importância a isso. Pelo menos para já, estamos entendidos?
- Sim, chefe. – brincou Jaden.
Contudo, Anon nem estremeceu a boca, comprimindo-a num risco quase perfeito, a sua expressão mais severa do que nunca.
- Hoje vou falar-te dos Quatro Dons… - recomeçou, virando-se de costas para Jaden. – Estes quatro Dons foram criados por Aleron Tariqq, que, como já te disse ontem, é o criador das Dunas de Tariqq. No fim de te elucidar o nome e significado de cada poder, dir-te-ei como é que eles foram criados. Ainda não estás preparado para perceber isso.
- Está bem…
- Bem… primeiro vou te explicar o Primeiro Dom, mais conhecido como Zaghan Assyn…
- O quê? – inquiriu Jaden, desnorteado.
- Zaghan Assyn! Na linguagem do meu povo significa: O Olho Calculista do Leopardo. Que, como já deves calcular, é o Dom que eu possuo.
Subitamente, ergueu o seu braço esquerdo e mostrou uma espécie de cicatriz. Assemelhava-se imenso à marca que Jaden detinha no seu antebraço, mas tinha outra forma. Era uma mancha prateada com uma espécie de olho parecido com o de um felino a salientar-se na pele.


- Como já deves ter reparado, não és o único que tem uma marca invulgar no braço. Todos os habitantes das Dunas de Tariqq possuem uma marca assim, dependendo do Dom que fruem. Mas voltando ao primeiro Dom… o Zaghan Assyn consiste na possibilidade de o indivíduo se conseguir transformar instantaneamente num leopardo, com um dobro do tamanho e força de um animal selvagem comum. Alguma dúvida?
- N-não… acho eu…
- Ótimo… passemos ao Terceiro Dom.
- Então e o Segundo? – interrompeu Jaden, confuso.
- Já lá vamos… vamos seguir a ordem…
- Ordem? Bem, não sei se sabes contar, mas acho que o terceiro vem depois do segundo.
O rosto pálido de Anon ficou de um tom escarlate de um momento para o outro. Parecia que ia explodir.
- Vamos lá ver se nos entendemos… uma coisa é a tua cultura… outra coisa é a minha. Eu neste momento estou-te a dar a conhecer a minha cultura, por isso é melhor calares-te. Há uma razão para eu ter saltado do primeiro para o terceiro, basta esperares e eu explico-te!
Jaden não respondeu, sentindo uma pontada de vergonha dentro de si, pelo que Anon continuou.
- O Terceiro Dom é o Tigriz Dayan, ou A Ira do Tigre. Não difere muito do primeiro. Apenas tem a particularidade de o possuidor se conseguir transformar num tigre que, ao contrário do leopardo, não é tão calculista e apenas se preocupa em atacar! O seu símbolo é este… - Anon virou-se para a árvore, e apontou um dedo para o seu tronco.
De repente, como que por magia, uma espécie de cruz esculpiu-se no tronco, acompanhada de um fumo ligeiro, como se tivesse sido queimada apenas naquele núcleo.



- Dúvidas?
- Não…
- Então passemos para o Segundo Dom. Este é dos mais importantes na árvore dos Dons, porque é o que basicamente controlada o resto dos dons.
Anon juntou as duas mãos, e quando as voltou a separar uma chama prateada desabrochou, contorcendo-se convulsivamente.
- Chama-se Flam Braeken, que, traduzindo para a vossa linguagem, significa A Chama Interior. – Continuou. - É muito conhecido, pois o indivíduo fica nutrido de uma força sobrenatural, capaz de suportar até dezenas de toneladas, e até controlar corpos à distância devido a ondas invisíveis de energia que penetram no Sistema Nervoso do alvo que se queira controlar.


- Foi esse Dom que eu usei com o meu colega?! Quando o empurrei quase nem lhe toquei… - concluiu Jaden. Agora tudo fazia sentido… agora começava a acreditar mais em Anon.
- Sim… foi isso mesmo.
- Então mas… como é que esse Dom controla os outros todos?
- Bem… controla mais precisamente o primeiro e o segundo. Para um indivíduo se transformar num animal selvagem, é preciso algo dentro de si que o faça transformar-se… um espírito selvagem… um fogo interior! Mais alguma questão?
Jaden acenou negativamente com a cabeça, prestando atenção ao que Anon lhe ia dizer a seguir. Ainda não conseguia acreditar que o motivo daquele acidente com o seu colega tinha sido o segundo Dom. A sua mente disparara nesse momento, num turbilhão de expeculações, como se estivesse a planear a sua próxima cobaia. Já que conseguia controlar um Dom, então não seria nada difícil controlar os outros, pensou ele.
Anon voltou a virar-se para a árvore, mas não esculpiu nada no seu tronco. Em vez disso, dois riscos surgiram no meio de nevoeiro, como duas pequenas cordas de prata, que se entrelaçaram perfeitamente, como se estivessem a dar um nó.


- Este é o Mital Etnam… O Poder da Mente. É um dos mais raros dentre os Quatro Dons. Consiste na capacidade de ler e controlar a mente de outrem, criando-lhe ilusões e fazendo-o cometer atos que, posteriormente, a vítima nem se recorda. Este símbolo ilustra isso mesmo… a Ligação Neural. Foi o que o Abraxaz, ou Thomas, fez contigo…
Jaden sentiu o seu coração parar nesse momento. Arregalou os olhos, quais duas amêndoas enormes.
- O quê?
- Porque é que achas que te sentias tão irritado com os teus amigos? Ao ponto de sentires vontade de bater no teu amigo cenoura?
- Como é que…?
- Foi o Abraxaz que controlou a tua mente, para que o visses como um refúgio e assim aproximares-te dele, para lhe facilitar o seu trabalho. E tu não te lembras de nada… e se te lembras, até agora pensaste ser algo que viesse dentro de ti mesmo… da tua própria vontade. Correto?
- Meu Deus… agora tudo faz sentido! – exclamou Jaden, com um tom de entusiasmo, porém de indignação, na sua voz. Tudo na sua cabeça encaixava perfeitamente. – Mas… o Abraxaz transformou-se num tigre… isso quer dizer que ele tem o terceiro Dom. Como é que ele pode ter dois Dons em simultâneo?
Anon sorriu jovialmente.
- Já estava à espera que perguntasses isso. O Abraxaz é um dos muitos a possuir mais do que um Dom. Tal como tu, que os possuis a todos, o Abraxaz possui dois deles, disciplinando a sua mente conforme as suas necessidades.
- Eu possuo todos os Dons?!
- Sim… e é isso que te vou falar agora, Jaden… O Traham Suryah.


37º Capítulo – O Ressentimento de Nathan


No dia seguinte, a manhã despertara com uma chuva intensa. A trovoada ruidosa sobressaltou Jaden, que acordou de um salto. O seu quarto estava escuro, apenas pela fresta da sua porta entreaberta penetrava uma luz dourada subtil que presumiu virem da sala. Ainda a cambalear e sonolento, encaminhou-se para a porta do quarto e abriu-a. Incrivelmente, o resto da casa encontrava-se tão ou mais escuro que o seu quarto, mas a luz dourada continuava a fustigar-lhe o rosto. Andou pelo hall de entrada, onde o clarão se intensificava ainda mais, e quando chegou até à porta do quarto dos seus pais, um ruído eclodiu atrás de si. Olhou para trás. Ali, sob o chão de madeira envernizada, encontrava-se um velho, com uma longa barba e com o corpo esguio e magro. A expressão que se esculpia na sua face rugosa transparecia cansaço e ao mesmo tempo tristeza. Jaden deu um pulo e encostou-se à parede, a luz dourada a incidir sobre o velho.
- Olá, Jaden! – cumprimentou o velho, a sua voz delicada e rouca penetrou pelos ouvidos de Jaden de tal forma, que ecoou pelo seu cérebro, fazendo-o abrir os olhos.
Encontrava-se de novo deitado, não se ouvia chuva, e o quarto já não estava escuro e sombrio. Em vez disso, os estores estavam abertos até cima, deixando o sol de inverno inundar o quarto com uma luz amarela, aquecendo-o ligeiramente.
- Bom dia, meu querido! – saudou a sua mãe, dando-lhe um beijo na testa. – Que cara é essa?
- Não… não foi nada. Tive um sonho um pouco estranho. Oh meu Deus! Olha as horas! Tenho de me despachar!
E com isto, vestiu-se rapidamente e encaminhou-se para a cozinha, tirando o pacote de leite do frigorífico e bebendo diretamente.


- Oh Jaden! Eu já te disse para não beberes pelo pacote! – ralhou a mãe, entrando de rompante pela cozinha - Não és o único a beber leite nesta casa sabias?
- Isto já está no fim, mãe! O pai?
- Saiu mais cedo… hoje tinha uma reunião com os acionistas lá da empresa e precisava de estar lá mais cedo. E eu também já estou um pouco atrasada!


Jaden deu um beijo na testa da sua mãe e saiu de casa a correr, montando na sua mota e dirigindo-se para a universidade. O primeiro bloco da manhã passou-se calmamente. Uma vez mais, Jaden não conseguiu avistar Nathan em lado nenhum, o que o levou a pensar que talvez o colega o estivesse a evitar desde o baile de gala. Não seria normal faltar durante tantos dias às aulas. Mas por outro lado, tinha Daisy, que se tornara quase a única razão da sua vontade de ir à universidade. Cada dia que passava sentia-se mais atraído pela sua maneira graciosa e gentil de falar, a sua beleza que parecia aperfeiçoar-se de dia para dia e a sua sensibilidade.
Quando chegou a hora de almoço, Jaden dirigiu-se ao bar. Por uma fração de segundo, deu por si a pensar em Anon, e que a hora do seu encontro com ele se estava a aproximar a olhos vistos, coisa que não lhe agradava nada. Ainda não tivera tempo de digerir toda a informação que lhe tinha sido dada na tarde anterior. Apesar daquilo parecer tão real, ainda dava por si a pensar que aquilo podia não passar de um sonho, e Anon, Abraxaz e aquela noite na floresta podiam nunca ter existido. Mas os seus pensamentos foram logo interrompidos por Daisy.
- Jaden! Aqui! – chamou, amontoando o telemóvel na mala e levantando-se para lhe dar um beijo.
- Olá! Então, não era suposto já estares em casa?
- Era… mas como a Hannah não veio à última aula, resolvi ficar aqui á tua espera.


Jaden sorriu, verdadeiramente satisfeito por Daisy ter ficado à sua espera. O frio que se começava a fazer sentir enregelou-lhe a cara, tornando-a flácida e áspera.
- Não era preciso ficares à espera, não tenho medo de ir para casa sozinho – disse Jaden, fazendo uma careta pela sua piada sem graça.
Daisy soltou uma gargalhada, ao mesmo tempo que ficava a olhá-lo nos seus olhos azuis, acariciando-lhe o rosto. Ficava bonita a rir-se; as suas bochechas subitamente vermelhas como um pimentão a contrastar com o cabelo loiro. Jaden começou também a rir-se. De repente, pareciam duas crianças a rirem-se desalmadamente.
- Essa foi boa! – comentou Daisy, ainda a rir-se.
- Juro que não sei como te riste daquilo! – exclamou Jaden – Geralmente, quando eu dizia piadas secas, fulminavas-me com o olhar!
- Acho que o meu amor por ti fez com que as tuas piadas secas tivessem graça…
Jaden observou os seus lindos olhos azuis. Tinham um brilho anormal, que lhe fazia lembrar uma piscina de água cristalina e fresca. Sem dar por isso, perdeu-se no seu olhar. No segundo seguinte, sentiu o perfume doce de Daisy intensificar-se à medida que ela se aproximava.


A sua boca tocou a dela. Encaixaram-se na perfeição como duas peças de puzzle. Já não importava mais nada. Só queriam continuar. O sentimento tomou conta de ambos, os corpos a envolverem-se cada vez mais numa luta contínua. As mãos acariciavam a cara, o cabelo, o corpo… a paixão envolvia-os num círculo que não queriam ver quebrado.



Os lábios separaram-se lentamente, ambos abriram os olhos e sorriram. Jaden coçou a testa com uma peculiar voracidade. Já Daisy ajeitou o cabelo e a roupa, com um sorriso resplandecente. De repente, esta fez desaparecer o sorriso da sua cara tão rápido como ele tinha surgido. Jaden olhou para onde a rapariga olhava, confuso com a súbita mudança de expressão dela.
A uns escassos metros deles, estava Nathan. O cabelo ruivo estava bastante despenteado, mas não era isso o que mais chamava a atenção. O colega tinha uma expressão vazia, desiludida, como se tivesse acabado de ser traído pelos seus melhores amigos.


Talvez era exactamente isso que estava a acontecer, pensou Jaden. Nathan olhou, ora para Jaden, ora para Daisy e, de seguida, num passo bastante acelerado, começou a andar.
- Vou atrás dele – anunciou Jaden.
- Não! – negou-lhe Daisy, puxando-lhe firmemente o braço – Sabes como ele é infantil e exagerado. Deixa-o que o amuo já lhe passa.
Jaden olhou para o local onde há poucos segundos estivera Nathan. Apesar de saber que Daisy tinha razão, não deixava de ficar preocupado. Nathan era um rapaz descontraído, raramente ficava triste ou preocupado. O que quer que tivesse sido que o deixara naquele estado tinha que ser mesmo grave.
- Esquece-o, Jaden. Já é altura de ele crescer e deixar de ser a criança que é. Estou saturada dos amuos ridículos dele! – murmurou Daisy, desdenhosamente – Podemos ou não aproveitar este tempo só para nós?

36º Capítulo – Uma Tarefa por Cumprir



O Palácio de Melih Kibar, situado num penhasco sobranceiro ao mar inconstante movido pelas chuvas torrenciais que assolavam toda a cidade, as suas grandes torres a rasgar o céu negro como o breu, ficava apenas a poucos metros de distância do homem que se arrastava pela terra molhada e pela pedra áspera e cortante que lhe abria golpes nos braços e no seu peito que arfava convulsivamente. Os seus olhos, outrora vermelhos vivos, encontravam-se apagados e mais foscos do que nunca. O seu cabelo descomposto e a sua roupa rasgada faziam com que parecesse nada mais do que um sem-abrigo. A chuva forte fustigava-lhe o rosto sujo de lama, e os relâmpagos constantes iluminavam intermitentemente o seu corpo débil e vulnerável.
- Código de segurança… - ordenou um dos guardas que vigiava o portão da frente do palácio, com a sua voz autoritária.
- Você faz ideia de quem eu sou? – vociferou o homem, ainda a rastejar pelo chão, mirando o guarda com o seu olhar intimidador, ainda que apagado.
O porteiro sobressaltou-se, olhando para o corpo que praticamente se estendia aos seus pés.
- Abraxaz? Depressa, abre o portão! – e outro guarda correu desajeitadamente para o portão colossal de cobre, que não demorou muito tempo até revolver as suas grades e transformar-se num arco autêntico. – A Princesa Radiah não vai gostar nada disto…
- O problema é meu, seu imbecil! Deixa-me passar!
E dito isto, levantou-se repentinamente no chão e cambaleou até ao interior do palácio, rumo ao salão do trono. Neste, a escuridão era quase igual à do céu tempestuoso que cobria todo o reino. Virada para um candeeiro que brotava uma chama imensa que iluminava quase toda a sala, encontrava-se Radiah, os seus cabelos negros e longos, com os reflexos vermelhos tremeluzentes a ondularem da raiz até às pontas, como serpentes.


Virou-se para trás lentamente, e quando encarou Abraxaz, o seu estado era pior do que o dos seus servos, soltou uma gargalhada de escárnio que assustou a maioria dos presentes.
- Espero que me tragas boas notícias, Abraxaz… para voltares tão cedo.
- Na verdade…
- Diz-me… diz-me, seu grande cobarde… diz-me, por favor, que o Traham Suryah está lá fora, neste momento, à espera de ser degolado pela minha própria adaga!
- As notícias não são assim tão boas…
- ENTÃO COMO! COMO É QUE TE ATREVES A VOLTAR AQUI, QUANDO EU TE DISSE CLARAMENTE QUE SÓ VOLTAVAS A COLOCAR AQUI OS TEUS PÉS QUANDO O TIVESSES!
A sua voz aguda, porém penetrante, ressoou por todo o salão, as chamas dos candeeiros a perderem a sua força ígnea, e os servos a limparem mais avidamente o chão.
- Ele estava à minha mercê! – tentou Abraxaz desculpar-se, os seus olhos desvanecidos a olhar fixamente para o chão de mármore preto.
- És tal e qual a sonsa da minha irmã! Um fraco!


- O Anon chegou no preciso momento em que eu estava prestes a matá-lo… e aí travámos uma batalha quase até à morte… como podes ver o meu… estado…
- Devias ter morrido! Devias ter morrido em vez de te ajoelhares perante mim a arranjar desculpa para o teu erro! Cobarde… nem um miúdo como aquele Anon conseguiste aniquilar. Tu sabes que se o Traham Suryah souber da Profecia acaba-se tudo! Não sabes, Abraxaz?
Perante o tom de voz impressionantemente assustado de Radiah, Abraxaz levantou-se, agora mais empertigado e com uma expressão mais confiante.
- Estarei a notar medo? – soltou uma gargalhada que nem se percebia ser de triunfo ou receio. – A mulher que já superou todos os obstáculos? Foi graças a teres superados esses obstáculos que estás aí, nesse trono, a governar um reino que te venera! E brevemente um Império inteiro! Nem tudo está perdido, Radiah…
- O que é que sugeres? Um plano? Queres traçar um plano para sair novamente furado? Para isso mais vale matar-te de uma vez…
- O Anon não é estúpido… ele vai perceber que mais tarde ou mais cedo o Traham Suryah vai ter que ser levado para aqui. E quando ele vier para cá, vai ser acolhido pelas Guerreiras de Olyan, quase de certeza. Basta encontrarmos o esconderijo delas, e matá-lo!


Radiah aproximou-se de Abraxaz, o seu olhar vermelho vivo a mirá-lo de alto abaixo. As suas mãos pousaram no seu peito musculado, e os seus lábios tocaram no seu pescoço.
- Então quando ele cá estiver… vais fazer esforços sem precedentes para o encontrar e trazê-lo até mim, para eu acabar com isto de uma vez por todas. Caso contrário… - as suas longas unhas pretas arranharam o seu braço ferido, fazendo Abraxaz soltar um esgar de dor - …sabes as consequências… e seria uma pena, não achas? Matar o meu próprio marido… Quem mais me iria dar aquele… alento que todas as mulheres precisam quando estão em baixo, hum? – e a sua mão voltou a percorrer o seu pescoço, os seus lábios a rasparem nos de Abraxaz. – Seria uma pena desperdiçar-te…


- Não te deixarei ficar mal… - disse Abraxaz, o seu olhar agora mais aceso e vivo.
- Ótimo. Era isso que queria ouvir… o nosso trabalho ainda não está acabado…

35º Capítulo – A História das Dunas de Tariqq


Depois de levar Daisy a casa, Jaden ponderou uma vez mais sobre a sua decisão. Parecia quase um passo louco entrar novamente naquela floresta e ir ter com um rapaz que nem sequer conhecia. Mas Anon salvara-lhe a vida, e isso fazia-o ver as coisas de uma outra maneira. Olhou uma vez mais para marca cravejada no seu braço esquerdo antes de avançar para a imensidão da floresta. Esta continuava vermelha e a debater-se sobre si própria.
Perfurou o mato, olhando em redor na esperança de encontrar Anon. Mas não viu mais nada a não ser árvores. Avançou para a clareira, onde se estendia um grande lago ladeado por pequenos arbustos. Aquele sítio visto de dia não parecia tão assombroso como visto de noite. Talvez porque não houvesse lá nenhum animal selvagem para o atacar. Porém, ao virar-se para trás, um leopardo de pelo dourado e olhos azuis-claros parecia olhá-lo incansavelmente.


- Isso é mesmo necessário? – inquiriu Jaden, impaciente. – Não te podes pôr humano outra vez?
Por seu turno, o leopardo colocou-se de pé, tal e qual uma pessoa, e rapidamente um corpo esculpiu-se no seu pelo, como se estivesse a sair do mesmo. De lá, surgiu um rapaz de cabelos prateados, que pareciam incrivelmente louros à luz do sol, mantendo os seus reflexos azuis imensamente brilhantes.
- Já te disse… eu não sou humano… - limitou-se Anon a responder, caminhando para junto de uma árvore. – Fico contente por teres vindo…
- Pois… mas pensei duas vezes antes de vir. Aliás, acho que pensei mais do que duas vezes…
- Vocês humanos não gostam nada de arriscar pois não?


- E tu não sabes fazer mais nada senão criticar-me?
- Eu não te estou a criticar. Bem, mas não foi para isso que aqui vieste. Senta-te…
Jaden sentou-se sobre as folhas secas caídas das árvores, enquanto observava Anon a dirigir-se para trás e para diante, com uma expressão pensativa, como se estivesse a pensar no que dizer a seguir.
- Acho que a melhor maneira de começares a interiorizar esta informação toda é saberes tudo o que tens a saber sobre o meu mundo.
- Parece-me bem… - disse Jaden, enquanto pegava em folhas e as rasgava, causando um barulho irritante.
Mas subitamente, as folhas que detinha nas suas mãos pareceram queimar-se, transformando-se em meras cinzas que não tardaram a escapar por entre os seus dedos.
- És capaz de prestar atenção?
- Mas eu estava a…
- Não interessa… - interrompeu Anon.
Encostou-se a uma árvore, sem deixar de fixar os olhos azuis-cinza de Jaden. Passados poucos segundos, como se tivesse acordado de um transe, recomeçou.
- Eu venho de um mundo muito diferente do teu… uma outra dimensão. As Dunas de Tariqq. Há anos atrás, as Dunas de Tariqq eram governadas pelo Rei Jareth, um governante muito estimado pelo meu povo. Ele era compreensivo, honesto, não ligava a sumptuosidades, e acima de tudo, amava o seu povo, e punha-o acima de qualquer coisa… excepto as suas duas filhas, é claro. Aquah e Radiah.


Jaden lembrou-se quase instantaneamente daqueles dois nomes. Tinham sido pronunciados por Anon e Abraxaz na noite anterior, antes de cair ao lago.
- Radiah é a filha mais velha, e Aquah a mais nova. Amadas incondicionalmente pelo Rei. Porém, ambas criaram um ódio recíproco, gerando uma competição e um confronto de ideias e mentalidades completamente antagónicas. Radiah começou a conquistar seguidores, virando-os contra a sua irmã.


«Porém, Aquah apenas se preocupava com o bem-estar do povo das Dunas de Tariqq, mesmo que este estivesse completamente contra si. Por outras palavras, o Rei Jareth tinha como filhas um Anjo… e um Demónio.


«Até que um dia, houve um golpe de que ninguém estava à espera. Radiah ficou tão obcecada em herdar o trono do seu pai, que organizou um motim que assolou toda a cidade governada pelo Rei Jareth. Criou exércitos muito poderosos que matavam e destruíam tudo o que se lhes atravessava no caminho. Gerou-se uma Batalha sem fim… armas de aço puro contra a inocência de um povo vulnerável. Mas essa invasão servia apenas de distração para o Rei Jareth. O que Radiah realmente queria, era matar o seu próprio pai, para subir ao trono e assim aniquilar Aquah, para ter o caminho completamente livre.
Jaden deteve-se por alguns instantes. Manteve a boca entreaberta, como se quisesse dizer alguma coisa e não conseguisse. Mas Anon parecia nem ter reparado na sua cara de espanto, e continuou o seu monólogo.
- Está claro que ela conseguiu o que queria. Bem, pelo menos… parte. Matou o seu pai, atraindo-o para uma emboscada. Mas, por uma razão que nos é desde então desconhecida, o trono, o palácio, até a própria areia do deserto que circundava o Reino viraram-se contra ela, impedindo-a de assumir o poder. Aí, a sua revolta assumiu um tamanho colossal, tornando-a cada vez mais vingativa, sangrenta e desumana.


- Porquê? – perguntou finalmente Jaden, qual criança a ouvir história da avó. – Porque é que ela ficou assim?
- Já esperava que perguntasses isso… - disse Anon, com um sorriso ligeiro. – Diz-me… se estivesses a planear algo há imenso tempo… dias, semanas, meses, talvez anos; e no fim não fosses bem sucedido, como é que reagirias?
- Não mataria os meus pais, de certeza…
- Concentra-te, Traham Suryah! Não vês? O ódio de Radiah pela sua irmã Aquah, a aparente razão por não conseguir subir ao trono, tornou-se cada vez maior, e nada a deterá enquanto ela não conseguir matá-la! Esta exaltação levou a que as Dunas de Tariqq se dividissem em dois reinos rivais: Melih Kibar, um reino governado pela tirania de Radiah, e Nau-Ashta, governada pela paz e espiritualidade de Aquah.
«Eu não aguentava ver o meu próprio lar dividido daquela forma, e vi-me no dever de fazer algo! Acreditar nas lendas…
- Lendas? – indagou Jaden, franzindo o sobrolho.


- Há muito tempo que se fala na existência de um Oráculo escrito pelo próprio criador das Dunas de Tariqq, Aleron Tariqq. Esse Oráculo contém a resposta para os nossos problemas! Contém algo já há muito profetizado, algo que nem sequer Radiah imagina. A Profecia Wyatt!
- Então porque é que não consultam esse Oráculo, ou lá o que é? – perguntou Jaden, desinteressado.
- O Oráculo tem estado desaparecido… nem se sabe sequer a sua forma, a sua cor... se é realmente um manuscrito ou apenas uma frase… Desapareceu sem deixar rasto.
- Oh… que chatice… - lamentou Jaden, ironicamente.
Mas Anon não pareceu incomodar-se com aquela frase sarcástica, e apenas se limitou a sorrir levemente para Jaden, olhando-o nos olhos.
- E é aqui que tu entras, Jaden…


Por segundos, Jaden permaneceu petrificado, a olhar para o solo coberto por uma manta de folhas secas. Algo dentro de si revolveu-lhe o estômago, dilacerando-o por completo. O que se estaria a passar consigo?
- Eu?
- Sim… tu. Apenas tu podes encontrar o Oráculo, Jaden…
- Porquê eu? Tenho algum mapa, é?
- Não sejas ignorante, rapaz! – Anon parecia um homem de 50 anos a falar, como se Jaden não passasse de uma criança. – Mas isso eu vou explicar-te no nosso próximo encontro, que, para que fiques a saber, trará muito mais informação do que esta. Isto apenas serviu para te localizar no espaço e no tempo.
- Ótimo… posso-me ir embora?
Anon fitou-o, agora sem sinal de paciência no seu olhar enfurecido, assemelhando-se ao de Thomas.
- É bom que mudes de atitude! Amanhã quero-te aqui à mesma hora.


Contudo, Jaden virou-lhe as costas e perfurou o mato com as mãos preguiçosamente metidas nos bolsos do seu casaco. Apesar de não querer demonstrar interesse algum, algo no seu íntimo o fizera não tirar os olhos de Anon, nem dispersar a sua atenção daquela história. Dentro de si debatiam-se ainda mais perguntas do que as que já tinha do dia anterior, e embora se sentisse tentado a perguntar a Anon, achava que apenas uma pessoa conseguia procurar as respostas: ele próprio.

34º Capítulo - Uma Decisão Acertada


Na manhã seguinte, Jaden levantou-se mais cedo para não ter que encarar os seus pais ao pequeno-almoço. Com certeza que lhe iam questionar sobre o facto de ter vindo mais cedo da cerimónia, coisa que não estava de longe disposto, embora soubesse que não os podia evitar para sempre. Mal pôs o pé na rua, sentiu um frio enorme a impregnar-se no seu corpo, lembrando-o da sua queda no lago da floresta. Esse momento lembrou-lhe do convite de Anon ao qual Jaden ainda não tinha respondido. Embora pensasse que a decisão seria óbvia (um Não), ainda dava por si a ponderar melhor. Será que se fosse ter com ele ficaria a saber tudo o que precisava? A marca, a sua força inexplicável no dia do acidente… tudo aquilo devia ter uma explicação, que só podia ser dada por uma pessoa: o rapaz de cabelos prateados.
Mergulhado nos seus pensamentos, pareceu dar apenas três passos e já estava junto da universidade, a avistar alunos a chegarem nos seus carros ou motas. Daisy fora exceção, pois, tal como Jaden, chegara à escola a pé.
- Então, ‘mor? – cumprimentou Daisy, dando-lhe um beijo. – Ontem foste-te embora, eu fiquei mesmo sem perceber nada! O que é que se passou contigo?
- Não foi nada de especial, não precisas de ficar preocupada! Foi o que eu disse à professora, tropecei e caí quando tinha ido lá fora apanhar ar.


- Tens a certeza?
- Sim! Bem, vamos? Já estamos atrasados.
Jaden viu-se obrigado a mentir a Daisy. Não queria explicar-lhe o que tinha acontecido naquela noite, pelo simples facto de ser anormalmente assustador voltar a lembrar-se da imagem do tigre selvagem mesmo sem cima de si.
O dia passou-se sem nenhuma agitação. Como era de esperar, Jaden já não avistava Thomas em nenhuma esquina a olhá-lo com a sua expressão apática, o que, de certo modo, o deixava mais apaziguado. Mas Thomas – ou Abraxaz – não era o único a fazer notar a sua ausência. Nathan também não tinha aparecido naquele dia, pelo que Jaden pensou que o amigo estaria de cama por uma congestão de croquetes e ponche de cereja. À hora de almoço, todos os alunos comentavam a noite espetacular que tinham tido, menos Jaden. Pelo contrário, tentava esquecê-la por completo. Contudo, Daisy fazia questão de o lembrar.
- Meu Deus, enquanto estiveste fora eu fartei-me de responder àqueles jornalistas estúpidos! O pior é que não queriam saber de mim nem dos meus estudos, mas sim dos futuros negócios do meu pai. É claro que eu me recusei a responder a perguntas que são supostas ninguém saber! Mas não deixo de ficar enervada!


- São uns interesseiros… é o que é… - disse Jaden, vagamente, remexendo com o garfo no seu puré de batata.
- O que é que se passa contigo? Estás muito calado! – proferiu Daisy, limpando graciosamente a boca a um guardanapo cor-de-rosa que Jaden não fazia ideia onde o tinha arranjado.
- É normal, não é? Não tenho nada a dizer sobre a noite anterior… estive ausente quase toda a cerimónia.
- Mas deves lembrar-te de pelo menos uma coisa, não? – perguntou Daisy, apontando o seu dedo para os lábios de Jaden.
Este sorriu, e respondeu:
- Claro… acho que foi o auge da minha noite…
Passados alguns instantes, e tal como Jaden previra, Daisy olhou em volta à procura de Nathan, que nem sequer para o almoço tinha aparecido, mesmo sendo iogurte de morango como sobremesa.
- Onde é que está o Nathan? – perguntou Daisy, com uma indiferença pouco convincente.


- Não sei… provavelmente ele não veio hoje.
- Ah, pois… ressaca de rissóis e de ponche. Sabes, não sei bem porquê, mas ontem à noite ele estava estranho… fui falar com ele uma vez, e ele quase que me virou as costas.
O tom de voz de Daisy expressara nitidamente o quão reticente ela estava em desabafar ou não o que acabara de dizer. Olhava Jaden com uma espécie de curiosidade assustada e começava já a apresentar sinais de arrependimento quando este sugeriu:
- Se calhar gosta de ti.
Daisy franziu o sobrolho até as sobrancelhas parecerem uma só, bastante comprida, e simulou um arrepio.
- Vira essa boca para lá! Nem pensar!
E dito isto, ferrou furiosamente um murro no antebraço direito de Jaden. Este gemeu, a testa subitamente húmida e os seus dentes cerrados tentando conter a dor.
- Jaden desculpa! Desculpa, não te queria magoar! – Lamentou ela, com as duas mãos à frente da boca num gesto de choque.
- Não faz mal, isto já passa… - murmurou ele, agarrado ao antebraço, ainda a suar avidamente.
- Deixa-me ver, talvez seja melhor pores gelo para isso não inchar…
Jaden ainda tentou impedir a amiga de observar o seu antebraço, mas sem qualquer sucesso. Arregaçou-lhe energicamente a manga, e o que viu não era, definitivamente, uma consequência da sua fúria. No seu braço direito estavam quatro cicatrizes paralelamente esculpidas na sua pele avermelhada. Daisy soltou um pequeno guincho histérico ao deparar-se com aquela imagem.
- O que é isto???
- Nada… fui eu que me cortei. Já há muito tempo…


- Curioso… nunca vi essa cicatriz quando usavas manga curta no verão… - observou Daisy, com uma expressão desconfiada.
- Isso é porque nunca te deste ao trabalho de reparar. Bem, vamos? Eu levo-te a casa.
Embora reticente, e mantendo a sua expressão severamente desconfiada, Daisy levantou-se e aceitou a companhia de Jaden. Tinha um lugar para ir depois de levar a namorada a casa, embora achasse a sua decisão completamente estapafúrdia.

33º Capítulo – Pensamentos


Jaden voltou para a cerimónia depois de ter conseguido, ou apenas tentado, assimilar tudo o que se tinha passado na floresta. Não sabia o que pensar, nem o que fazer perante aquele convite de Anon. Seria aquilo um sonho? Uma brincadeira? Ou tudo aquilo tinha sido real? Thomas não ser quem ele pensava que era, e transformar-se num tigre selvagem, tentando torna-lo mais uma vítima dos inúmeros homicídios que tinham ocorrido na cidade. Depois aparecer um rapaz que lhe diz que tem um dom especial, e que nem sequer é humano?
No meio daquela tempestade elétrica de pensamentos, ideias e expeculações, nem tinha reparado que já tinha chegado à porta de universidade. De lá de dentro ouvia-se uma música clássica que revolvera as suas entranhas. Entrou no salão, sentindo todos os olhos postos em si.
- Onde é que estiveste? Olha para tua cara! Olha para a tua roupa! – Daisy ficou embasbacada ao ver a figura de Jaden. A sua cara estava meia suja de terra, a camisa estava manchada e meia rasgada e o cabelo descomposto. – O que é que te aconteceu? – Insistiu Daisy, puxando-o para um canto onde ninguém os pudesse ver.


- É uma longa história… - respondeu Jaden, o seu peito a arfar incessantemente. – Se te contasse não acreditarias…
- Mesmo assim… conta-me!
Jaden suspirou impacientemente, enquanto esfregava a cara, levando manchas de terra à sua mão. Nesse instante, surgiu a professora de Contabilidade, com o seu vestido longo de pele a rastejar pelo chão, e um chapéu enorme.
- Ah, ainda bem que a encontro menina Hudson, tenho andado à sua procura, os jornalistas querem… CÉUS! O que é que lhe aconteceu rapaz?
Jaden mirou a professora com um olhar cansado, porém, a sua voz saiu-lhe mais avidamente do que nunca.
- Caí… eu vou para casa…
- Já? Mas ainda é tão cedo! – exclamou Daisy, desapontada, recebendo tristemente o beijo carinhoso de Jaden, pelo que a professora virou rapidamente o olhar para uma jarra exposta ali perto.
Porém, Jaden limitou-se a não responder, e a perfurar novamente os inúmeros grupos de estudantes que se viam obrigados a interromper as suas conversas ou as suas danças, para mirarem o rapaz todo sujo e descomposto. Tal como esperava, quando chegou a casa, as luzes ainda estavam acesas, pelo que percebera que era realmente muito cedo.
- Filho? – inquiriu a mãe, acordando de um sono leve no sofá. – Já chegaste? Mas que horas são?
- Eu… eu vim mais cedo. Não me estava a sentir muito bem…
- Então? Queres que eu te prepare um chá? – Devido à sua sonolência, nem tinha reparado no estado do filho, pelo que Jaden aproveitou para se dirigir lentamente para o quarto.
- Não, isto… isto passa. Bebi uns copos a mais, só isso… - mentiu.
- E falas disso com a maior naturalidade! Jaden, sabes que para te divertires não é preciso beberes!


Mas entretanto, a porta do seu quarto fechara-se, e a voz da sua mãe cessou. Tinha a cabeça a latejar, tal como a marca e o braço perfeitamente cicatrizado. Deitou-se na cama e fechou os olhos energeticamente. Nem podia acreditar no que lhe tinha acontecido naquela noite. Por alguns instantes, a frase de Anon veio-lhe à cabeça, submergindo a sua mente por completo.
“Vem ter comigo, e eu explicar-te-ei tudo o que tu precisas de saber para… acreditares… “


Olhou para o seu braço esquerdo, vislumbrando a marca em forma de espiral. Já não se debatia, nem se contorcia. Encontrava-se quieta como sempre estivera há dias atrás, nem mudar de cor, nem de forma. Seria aquilo verdade? Será que possuía realmente um dom que lhe era desconhecido até então? Foi então que se lembrou do dia em que atirou o seu colega contra o muro. Não seria qualquer pessoa a conseguir atirá-lo para dez metros de distância… nem seria qualquer pessoa a ter uma marca de nascença tão invulgar. Estariam aqueles acontecimentos relacionados?
Incalculáveis questões sem resposta debatiam-se no seu íntimo, fazendo a sua cabeça latejar ainda mais. Encolheu-se na cama, e só se tornou a levantar quando o sol espreitou pela ínfima fresta de estore aberta.



32º Capítulo – A Mensagem de Anon


A consciência de Jaden pareceu recuperar de um sono que pareceu durar dias. Encontrava-se deitado sobre uma mistura de relva húmida e folhas secas que caiam constantemente das árvores. Um vento gélido fustigou-lhe o rosto, assim como o resto do corpo. Não se atreveu a abrir os olhos, preferia mantê-los fechados enquanto dois homens lutavam até à morte. Mas nesse instante reparou no silêncio que cobria todos aqueles troncos de árvores e arbustos. O ambiente parecia mais apaziguado sem nenhum sinal de luta. Assim como o sítio onde se encontrava deitado; havia talvez horas em que ele estivera mergulhado num lago gelado e escuro. Tinha sido resgatado.


Abriu lentamente os olhos, e viu a imagem turva de uma pequena fogueira a crepitar freneticamente. Ao lado dessa tenda, encontrava-se um rapaz corpulento, o que Jaden tinha visto antes de desmaiar, mas com um ar mais calmo e uma expressão mais vazia e indiferente, fazendo-o lembrar-se de Thomas. Quando se levantou, fez estalar uns galhos que se encontravam mesmo ali ao pé, fazendo o rapaz de cabelos prateados virar-se repentinamente para trás. Contudo, não teve reação, e apenas disse:
- Vejo que já acordaste… - e voltou a remexer nas chamas da fogueira com um pau.
Jaden caminhou em volta da fogueira, de maneira a sentar-se em frente ao rapaz.
- Q-quem és tu?
- Aquele que acabou de te salvar a vida. – Perante a expressão confusa de Jaden, sorriu levemente e apresentou-se – Chamo-me Anon. E presumo que tu te chames Jaden Lory, não é verdade?


- Sim… como é que sabes o meu nome?
- O teu amigo Nathan não era o único a desconfiar do ‘Thomas’ que mais tarde vieste a saber que se chamava Abraxaz e que quase te matou…
- Você tem estado a…
- Espiar-te? Não sei que tipo de significado é que vocês, humanos, dão a essa palavra tão complexa, mas se é o que eu estou a pensar… sim, estava.
Jaden abanou energeticamente a cabeça. Dentro de si debatia-se uma pergunta que insistia em manter-se na sua mente: porque haveria um rapaz chamar as pessoas de humanos quando ele era um?
- Eu não sou humano – elucidou Anon, como se lhe tivesse lido os pensamentos.
- Isto é alguma brincadeira? – perguntou Jaden, rudemente.
Fez-se uma longa pausa, ouvindo-se apenas o crepitar frenético da fogueira no meio deles. De seguida, uma pequena gargalhada irrompeu de Anon.
- Olha para o teu braço direito…
- O quê?


- Olha para o teu braço direito… - repetiu Anon, impaciente.
Jaden olhou para o seu braço e arregaçou a manga da sua camisa, que já não se encontrava rasgada pelas garras do tigre que o tinha ferido. Tal como o tecido, a sua ferida já não jorrava sangue nem se encontrava profundamente aberta. No seu lugar estavam apenas quatro cicatrizes, como se já lá estivessem há imensos anos.
- Mas…
- Pensas que um médico a conseguia cicatrizar num espaço de uma hora?
- E… e ainda agora estavam aqui um… tigre… e um leopardo! A lutarem!
- O leopardo era eu, não sei se te lembras, depois eu assumi a minha forma original para não teres um ataque cardíaco. Tal como o Abraxaz.
- Quem? – inquiriu Jaden, confuso.
Anon fez uma expressão ainda mais impaciente e ameaçadora.
- Será que a queda ao lago te provocou falta de memória? De qualquer das formas eu volto a repetir: aquele que tu pensavas que era o Thomas, era o Abraxaz! Um amante de arqui-inimiga do meu povo, que veio aqui a seu mando para te matar.
- A mim? Porquê? Porquê eu?
- Tu vives num mundo sustentado por crimes, como é que és capaz de te questionares porquê que alguém te quis matar? Estou a ver que ainda vais ter de aprender muito.


Seguiu-se outra longa pausa. Anon permanecia a remexer nas chamas com um pau, sem proferir uma palavra, como se estivesse à espera de mais perguntas vindas de Jaden.
- Então… - recomeçou Jaden, de repente – Foi o Thomas que provocou todos estes homicídios aqui na cidade? Ele disse-me qualquer coisa quando… quando se transformou… naquilo…
- Num tigre? – completou Anon, com um sorriso na cara, como se estivesse a ver um programa de anedotas, sendo Jaden o humorista. – Sim, foi ele. Tal como eu, o Abraxaz, a quem tu ainda chamas Thomas, não pertence a este mundo… ao teu mundo. Daí a sentir-se mais fraco e vulnerável. Contudo, ele arranjou um método eficaz de recuperar energias para te conseguir perseguir todo este tempo: o sofrimento. Ele alimentava-se do sofrimento bizarro das pessoas, só assim é que ele podia ter energia suficiente para conseguir assumir a forma de uma pessoa que nem sequer existe.
Jaden esfregou os olhos, perplexo, abanando a cabeça vezes e vezes sem conta.
- Só podem estar a brincar comigo! – exclamou, a rir-se, qual humorista a rir-se da sua própria piada. – Então quer dizer que tu és de outra dimensão? – soltou outra gargalhada. – Agora é oficial: estão a gozar comigo. Ou então eu estou a ficar maluco…
Contudo, Anon olhava-o com uma expressão de indiferença, como se já estivesse à espera daquela reação.
- Aqui ninguém está a gozar contigo, Traham Suryah!
- Por favor, para de me chamar isso! Porque é que me chamam assim? Eu tenho um nome…
- A outra dimensão, como tu dizes, é real! E tu pertences a ela! – Anon apontou para o braço esquerdo de Jaden. Este vislumbrou a sua mácula azulada com uma espiral a contorcer-se contra a pele, agora mais do que nunca. – Tu pensas que isso é uma mera marca de nascença?
- Não contestes um dermatologista… - disse Jaden, sem nexo.
- E tu não contestes a minha própria cultura! Tu tens um poder Jaden, um poder que mais ninguém no meu mundo tem!
- Sim, sim… Vai-me contando histórias de terror, só faltavam aqui tendinhas e Escuteiros… - Jaden levantou-se e começou a olhar para a luz da lua, que banhava todas aquelas árvores e o lago da clareira com um manto prateado brilhante.
Por sua vez, Anon também se levantou, forçando Jaden a virar-se para a fogueira.
- Mas tu pensas que eu estou aqui a gastar o meu tempo só para contar uma história a um rapaz? Se eu estou aqui é por alguma razão. Tu tens um poder especial Jaden, ou pensas que o teu amiguinho ia contra aquele muro a dez metros de distância, quase a voar, por vontade própria?
- Foi um acidente…


- Provocado por essa marca! Tu não consegues controlar os teus poderes… ainda.
- Que queres dizer com isso?
- Vais aprender a controlá-los… e eu serei um dos teus professores.
- Olha, mas tu pensas o quê? Que eu vou acreditar nessa história? Sim! É uma história!
- Um rapaz em quem tu pensavas que podias confiar transformar-se num tigre mesmo defronte a ti e tentar matar-te, não me parece uma história para adormecer! – vociferou Anon, encarando Jaden com o seu olhar azulado.
- Eu nem sei se isso é real… posso muito bem estar a sonhar!
Ao ouvir aquelas palavras, Anon encaminhou-se bruscamente para a fogueira e alteou as mãos. Destas, irromperam duas chamas incandescentes, que foram cair nas já existentes, fazendo a fogueira aumentar rapidamente de volume.
Jaden permaneceu petrificado, com os olhos extremamente abertos, a olhar para aquela fogueira tão colossal, outrora pequena e insignificante.
- Amanhã vem ter comigo a esta floresta, depois das tuas aulas… - proferiu Anon, numa voz serena. – Vem ter comigo, e eu explicar-te-ei tudo o que tu precisas de saber para… acreditares…
E com isto, a fogueira apagou-se subitamente, e Anon desapareceu no meio de escuridão, deixando Jaden sozinho, completamente desorientado.

31º Capítulo: O Tigre e o Leopardo (Parte II)



Mas subitamente, sentiu o seu corpo a ser empurrado mesmo para a beira de um lago gelado, que se estendia ao longo da clareira do bosque. Virou-se para trás, e lá estava ele: um tigre quase do tamanho de um cavalo. As suas garras enterraram-se na carne do seu braço direito, rasgando-a, qual sangue a brotar infinitamente. Jaden soltou um grito de dor, passando a mão pelo seu braço ferido. Os olhos do tigre estavam raiados de sangue, e o seu pelo anormalmente grande roçava no seu rosto. O seu coração começou a chocalhar contra o peito, e o som da sua respiração descompassada era abafado pelo rugido do tigre que lhe ensurdecia os ouvidos.


- Mas… o que… o que é que… - balbuciou Jaden, a arfar, enquanto tentava a todo o custo estancar o sangue que lhe jorrava dos quatro arranhões profundos feitos pelas garras do tigre.
Contudo, o animal não respondeu. Em vez disso, olhava-o com uma expressão feroz, mas ao mesmo tempo satisfeita. Um riso malévolo acompanhado de outro rugido saiu-lhe da sua boca cheia de dentes afiados.
- Sim, Traham Suryah, sou eu… o Thomas. Ou talvez não seja mesmo ele!
- Tra… o quê? Mas o que é que… um tigre… fala… não me faças mal! Ai! – a sua pata enorme calcou no braço ferido da Jaden, sentindo-o dormente pelo frio que se impregnava por debaixo da camisa fina do seu fato.
- Imagina só! Imagina o que os teus amigos vão achar quando nunca mais apareceres! Vão desconfiar… vão achar que estás finalmente por entre as vítimas dos homicídios…
- F-foste… foste tu? NÃO! – uma espécie de choque elétrico percorreu o seu corpo, tornando-o ainda mais fraco e vulnerável.
- Pensa só como é que ela me vai gratificar, quando eu lhe disser que matei o Traham Suryah no seu próprio mundo!
E com isto, ergueu a sua pata, quais garras pontiagudas a saírem dos seus dedos gordos.
- NÃO! NÃOOO!
Contudo, nesse momento, o tigre alteou bruscamente a cabeça, olhando em frente. Jaden olhou para cima, e outro animal, mais elegante e majestoso, sobrevoou o lago e atirou o tigre contra um pinheiro ali perto. Com um rugido feroz, pôs-se de pé. O rapaz colocou-se de pé também, não tirando a mão do seu braço. Diante de si, encontravam-se um tigre – aquele que Jaden outrora pensara que era um rapaz normal chamado Thomas – e um leopardo, do mesmo tamanho, mas com uma pelagem mais curta e uns olhos azuis-claros extremamente brilhantes.


Movimentavam-se em círculos, de olhos fixos um no outro, prestes a atacarem-se mutuamente. Porém, não aconteceu nada. Em vez disso, os dois felinos puseram-se de pé, e assumiram de novo a forma humana. O leopardo transformara-se num rapaz alto e musculado, com uma roupa muito invulgar, de cabelo prateado com reflexos azuis brilhantes, e olhos claros e rasgados. O tigre, que Jaden esperara que se transformasse novamente no rapaz loiro de expressão apática, assumiu a forma de um homem com os seus 40 anos, de olhos e cabelo com clarões vermelhos.


- Abraxaz…! – vociferou o rapaz de cabelo prateado, a sua voz era tão graúda como o resto do seu corpo.
- Ora ora… se não é o moço de recados da Aquah… Anon – respondeu o homem de nome Abraxaz, outrora Thomas.
Jaden esfregou os olhos. «Aquah», «Abraxaz», «Traham Suryah». Todos estes nomes eram-lhe totalmente desconhecidos. Por uma fração de segundo, pensou que estaria a sonhar, mas a dor aguda vinda da ferida do seu braço fizera-lhe perceber que aquilo era tão real como os dois homens que descreviam um circulo quase perfeito à sua frente.
- Eu sabia que mais tarde ou mais cedo ela te mandaria aqui… Afinal eu não sou o único moço de recados, não é?
- Não me subestimes, rapazito! Posso matar-te numa mera questão de segundos! Depois o Traham Suryah.
- Não te atrevas a tocar-lhe! Sabes que a tua amada Radiah o quer vivo, não sabes? Para quê matá-lo, para depois também acabares como ele quando ela souber que desempenhaste mal a tua tarefa?
O homem de olhos vermelhos hesitou, mas tentou não demonstrar o seu receio, remetendo-se ao silêncio.
- Então? Como é? Ficamos aqui a conversar, ou vamos partir para a ação? – perguntou o rapaz de cabelos prateados, num tom de desafio.
- Depois de acabar contigo, levo o Traham Suryah. Aí, Radiah saberá o que fazer!
E com isto, um raio de luz vermelha irrompeu da mão do homem. Por sua vez, o rapaz corpulento fez um movimento repentino com os braços, e lançou uma rajada de vento enorme contra o corpo de Jaden, fazendo-o desequilibrar-se e cair no lago gelado.



A água fria entranhou-se pelo seu fato, percorrendo todo o seu corpo. Ao cimo da água, clarões de luz multicores eclodiam de todos os lados, juntamente com gritos de guerra. E de seguida, as suas pálpebras começaram a pesar-lhe cada vez mais, fazendo com que tudo desaparecesse no meio da escuridão.

30º Capítulo - O Tigre e o Leopardo (Parte I)



Passados alguns segundos que para Jaden pareceram horas ou talvez mesmo dias, os seus lábios e os de Daisy descolaram-se, enquanto a música acabava lentamente e os convidados dispersavam pela pista de dança. Sorriram um para o outro, porém com um olhar meio adormecido e apaixonado. Sentiu um calor a subir-lhe pelo peito acima, enquanto se encaminhavam para fora da pista de dança.


- Não posso crer! – exclamou um homem de cabelo no ar e com uns óculos estranhamente postos. – Daisy Hudson! A filha de Brock Hudson, o empresário mais famoso de todos os tempos!
Daisy corou rapidamente, mordendo o lábio com vergonha.
- S-sim, sou eu…
E nesse instante, jornalistas apareceram em massa do nada, disparando flashes para a cara de tom escarlate de Daisy. Jaden afastou-se, espremendo-se por entre a multidão de jornalistas que cercavam a namorada como se esta fosse uma super estrela.
Quando se conseguiu livrar daquele mar de gente, dirigiu-se para o buffet, onde brilhavam taças enormes de ponches de todas as cores e aperitivos com um aspeto delicioso. Olhou em redor na esperança de encontrar Nathan, mas sem sucesso. Este tinha desaparecido subitamente sem deixar rasto.
O ambiente naquele Hall ia-se tornando cada vez mais sufocante, com a entrada progressiva de convidados e professores universitários que, mal entravam, eram logo cercados por jornalistas que os bombardeavam com perguntas. Jaden saiu pela porta da frente, onde pendiam uma espécie de luzes de natal e outros adornos banhados a ouro, e encaminhou-se para o pátio da entrada.
- Olá, Jaden – cumprimentou Thomas, surgindo de repente.


- Olá – retribuiu ele, sentindo-se de repente pouco á vontade.
Todos os convidados que restavam naquele pátio já se tinham dirigido para o interior da Universidade, que era onde supostamente devia estar. Ficou a pensar nas palavras que Nathan lhe diria, se soubesse que estava a falar com o ‘rapaz estranho’. Já este olhava-o com uma estranha expressão de desconfiança, os olhos semicerrados e o queixo ligeiramente levantado.
- Ainda não tivemos oportunidade para falar sem interrupções – murmurou Thomas, apontando indiscretamente o queixo para Nathan, que cheirava um rissol de uma maneira bastante cómica, fazendo Jaden suspirar por finalmente ter encontrado Nathan, pelo que lhe dera a sensação que este se escondera de si no momento em que se encontrava perto das mesas de buffet. – Estás a gostar da cerimónia?


Jaden sorriu sem mostrar os dentes, e tentou impedir que a sua voz soasse antipática e fria, sem, no entanto, grandes resultados:
- Estou… e tu?
- Também. Está a ser muito agradável – afirmou Thomas, de uma forma estranhamente formal. Parecia ter quarenta anos e não vinte.
- Pois… Estás a tirar que curso? – Perguntou Jaden, vagamente.
Fez-se silêncio durante alguns segundos. Thomas quebrou-o, deixando transparecer alguma irritação:
- O mesmo que tu.
Jaden deteve-se abruptamente perante aquela resposta conturbada. Tinha a certeza que nunca falara a Thomas do seu curso. Da única vez que haviam estado juntos, a conversa acabara numa pequena discussão sobre a ‘Sala do Museu’. Sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha. De repente, a temperatura baixara imenso, e Jaden não tardou a perceber porquê.


Para lá dos seus olhos, estendia-se uma imensidão de árvores e arbustos, de todos os feitios. O chão que trilhava era terra, com folhas e galhos à mistura; quando Jaden os pisava, provocavam um som idêntico às batatas fritas a serem esmagadas. Num raio de dez metros, não se via rigorosamente mais nada para além da florestação.
- O que é que nós estamos aqui a fazer?! – exclamou Jaden, sentindo-se bastante intimidado por aquele par de olhos azuis que o observavam fixamente. Estes pareciam emanar uma pequena luz no meio do negrume denso que serpenteava os troncos das árvores.


- A dar um passeio… - respondeu Thomas, calmamente, e com um tom de indiferença na voz.
- Eu vou-me mas é embora… - bradou Jaden, bruscamente, antes de ser impedido por Thomas, que lhe apertou o braço com uma força enorme - LARGA-ME! Freak!
Aquela última palavra inquietou Thomas, fazendo-o largar o braço de Jaden rapidamente. Olhou-o com uma ferocidade ainda mais assustadora que há dias atrás, e os seus olhos outrora azuis denotavam um tom avermelhado e fosco. Soltou uma gargalhada de escárnio.
- Vê lá como me falas, Jaden…
- Eu falo como me apetecer! – respondeu, com um tom destemido na voz mas a recuar ligeiramente o passo. Sentia um misto de irritação e medo a comprimir-lhe o peito, perante aquele olhar de Thomas que mudara subitamente de cor.
- Não me parece, Traham Suryah! É melhor amansares-te senão a tua vida acaba aqui num instante.
Aquelas palavras que Thomas proferira, como forma de o alcunhar, fizeram com que o coração de Jaden disparasse abruptamente. Lembrou-se então no dia em que estivera na ‘sala do Museu’ em que ouvira vozes a falar numa língua estranha. Uma delas proferira exatamente esse nome. Mas os seus pensamentos foram logo quebrados com um grito de Thomas, qual porco em agonia. De repente, o seu corpo elevara-se do chão, e toda a carne existente nele parecia estar a ser sugada, tal eram os ossos que se salientavam. A sua pele ficou num tom alaranjado, e as pupilas dos seus olhos reduziam-se num pequeno risco preto. Foi então que da sua cabeça irromperam uma espécie de orelhas pontiagudas, e dos seus braços uma pelagem da cor de fogo listrada.
Mas Jaden não viu mais nada a não ser árvores à sua frente, pois tinha fugido antes que Thomas lhe pudesse eventualmente agredir.


Perfurou corajosa, porém hesitantemente, o negrume que se estendia por entre a florestação. Atrás de si conseguia ouvir um rugido sonoramente rouco e altivo, assemelhando-se ao de um leão. Este aproximava-se cada vez mais, pois o som dos galhos a serem fendidos pelo que pareciam ser patas enormes, intensificava-se progressivamente. Correu com todas as suas forças, o seu coração parecia que lhe saia pela boca, e o pouco que tinha comido na cerimónia parecia ondular no seu estômago como se estivesse prestes a vomitar. Os passos acelerados do animal que o perseguia aproximavam-se cada vez mais, e Jaden, temendo pela vida, gritou por socorro na esperança que alguém o ouvisse, mas sem sucesso. Estava sozinho na floresta com um monstro que nem sequer tinha coragem de encarar, olhando sempre em frente e correndo o quanto as suas pernas lhe permitiam.