6º Capítulo - Um Novo Aluno




No dia seguinte, o céu encontrava-se igualmente limpo, sem um fiapo de nuvem iminente. Jaden começava a ficar um tanto ou quanto aborrecido e saturado por sair de casa e sentir uma brisa escaldante logo de manhã. Assim como também estava cansado das repreensões da sua mãe em relação á sua marca apanhar tanto sol em dias como aqueles. E naquela manhã não fora exceção.
Ao pequeno-almoço, recomendara-lhe que usasse protetor solar naquela zona do braço, e logo a seguir colocasse uma compressa para tapar aquela mácula.
- Essa ideia não é má… mas eu não quero mãe! Isto não tem mal nenhum em apanhar sol!
- Se não tivesse mal nenhum, a médica não te mandava teres cuidados quadruplicados com essa zona! – vociferou a sua mãe com uma expressão zangada.
- Mas se nunca veio a revelar efeitos secundários, porque é que eu hei de me preocupar tanto?
- É por essa mesma razão, Jey! Se não queres que comecem a aparecer efeitos secundários, é melhor fazeres o que eu te digo!
Jaden começava a ficar extremamente irritado com aquela insistência da mãe, até que foi obrigado a aceitar, embora apenas tivesse posto o penso na mala e não o tivesse colocado no braço.
Uma vez mais, o pai tinha ido mais cedo para o trabalho, facto que impedira Jaden de se encontrar com ele e falar, sem que fosse repreendido por causa de uma mera “nódoa negra” no antebraço, pois ao contrário da sua mãe, o seu pai não se preocupava muito com aquele problema.
Quando chegou à Universidade, notou que ainda muitos alunos se encontravam no pátio da entrada, incluindo Daisy. Estava sozinha, empunhando um livro numa das mãos e olhando em redor com uma expressão desconfiada.
- Está tudo bem? – perguntou Jaden, aproximando-se dela.
- Hum? Ah! Sim, está… quer dizer… se o Nathan não aparecer.
- Porquê é que dizes isso? – Jaden não conseguiu conter uma pequena gargalhada ao ver que a causa da expressão aterrorizada de Daisy se chamava Nathan.



- Ele cada vez que me vê só fala de teorias e mais teorias! Irrita-me! Oh não, ele vem aí!
Jaden tentou fingir que não via o colega que se aproximava num passo descompassado e ímpar. A sua expressão lunática habitual e o cabelo ruivo-vivo a oscilar.
- Já começaste a estudar para a frequência?
Olhou para trás e deparou-se com Nathan, que exibia um sorriso e parecia radiante por estar ali. Carregava dois livros pesadíssimos numa só mão e trazia ao ombro uma mochila que parecia estar cheia de tralha.
- Ah… a frequência é só daqui a…



- Já reparaste neste calor? – atalhou Nathan, não parecendo nada pesaroso por ter interrompido tão rudemente Jaden. – Não é insuportável?
Daisy mostrou-se particularmente aborrecida e confusa com toda aquela situação. Pôs-se a olhar de alto a baixo Nathan, sem se preocupar com o facto de ele se aperceber. Não estava nada agradada com a sua presença; na realidade, parecia quase assustá-la.
- Bem, eu… eu vou andando! Vou ter com uma amiga ao…
- Até logo! – interrompeu novamente Nathan, com um sorriso de orelha e orelha esculpido na sua cara com acne.
Jaden suspirou. A presença do colega começava a incomodá-lo, e com a ausência de Daisy tornava-se ainda mais doloroso. Não lhe agradava nada ser malcriado, nunca fora ensinado para o ser. Mas começava a fartar-se de aturar o colega. Especialmente porque as conversas deste limitavam-se ao diálogo que Jaden trocava no elevador com as velhotas do seu prédio.
- Queres apontamentos meus? Se quiseres eu dou-te!
- Ah, sim… se eu precisar eu… peço – respondeu Jaden, coçando a testa com particular avidez.



Durante alguns minutos ficaram a olhar um para o outro sem dizer uma única palavra, facto que não parecia incomodar Nathan, de maneira alguma. Até parecia estar a divertir-se.
- Olha! Quem é aquele rapaz?!
Jaden virou-se para trás com uma expressão impaciente, mas rapidamente descobriu que aquela intervenção inoportuna de Nathan não fora assim tão imerecida. De facto, atrás dele, a escassos metros de distância, encontrava-se um rapaz loiro, com olhos rasgados e uma expressão cansada. Vestia uma espécie de gabardine com um colar comprido ao pescoço.
- Que lunático! Não te parece? – perguntou Nathan, olhando com desdém para o rapaz.



Mas Jaden ignorou. “Como se também não fosses”.
- Bem… vou comer um iogurte! – exclamou repentinamente, dando uma palmada nas costas de Jaden e encaminhando-se para o bar, como uma criança com os olhos brilhantes e dirigir-se para um carrossel da feira anual de Coast City, o seu cabelo ruivo a assemelhar-se intimamente a uma chama incandescente a abanar ainda mais com os seus ligeiros pulinhos.
Pouco tempo depois, Jaden também saiu do pátio, olhando uma vez mais para o rapaz, que parecia não se ter mexido do lugar onde estava sentado, como se estivesse petrificado.

5º Capítulo - Entrada


A lufada de ar fresco que fustigou a cara de Jaden, quando entrou em casa, teve o mesmo efeito que chuva no deserto. O calor abafadiço que se fazia sentir lá fora era insustentável. Sentiu-se um lagarto ao sol, a caminhar com o dossier às costas e o livro de Álgebra que, excepcionalmente, necessitara de levar nesse dia para a faculdade.
Mal chegara à cozinha, a sua mãe largou a loiça que estava a lavar e limpou as mãos a um pano de cozinha que tinha na cintura, perguntando:
- Muito cansado?
- O normal… – respondeu Jaden, despindo a t-shirt suada e dirigindo-se para o seu quarto.
A sua mãe estava pendurada na maçaneta da porta do quarto, com o avental florido pendurado no pescoço e um pano de cozinha amarelo numa das mãos. De repente, o seu olhar prendeu-se no antebraço esquerdo do filho, onde estava a marca invulgar que o caracterizava desde a nascença.
- Expuseste-a ao sol, Jaden? – questionou a mãe, retoricamente, enquanto segurava com firmeza o braço do filho, brilhante pelo suor.
- Não ia levar uma t-shirt de manga comprida por causa da marca, não é?



- Se não queres que seja assim, arranja outra solução! – bradou ela, alarmada – Queres contrair cancro de pele ou um problema grave?!
Jaden apanhou o pano que a mãe deixara cair enquanto o repreendia. Entregou-o com um movimento firme.
- Não é nada de especial, mãe! – Exclamou, em tom de voz colérico. - É só uma marca de nascença. Só isso.



Por momentos sentiu uma profunda irritação por a mãe o estar sempre a repreender em relação à marca, “como se não tivesse mais nada que falar” pensava ele. Naquele dia já Daisy o alarmara para aquele assunto, portanto não estava disposto a ouvir o mesmo da sua mãe.
Suspirou, desesperado, limpando-se a uma toalha e ligando a ventoinha, com o sangue a subir-lhe novamente à cabeça e o cérebro a contorcer-se.
- O jantar está pronto daqui a cinco minutos! – anunciou a mãe, levantando-se da cama e dirigindo-se para a porta. – Vê se tomas banho! Isso não vai lá contigo a secares-te com uma toalha, não sejas preguiçoso.
E fechou a porta precipitadamente.
Jaden atirou a toalha para o chão, tal era a sua cólera, e sentou-se na cama com o olhar a apontar para a parede. Nunca acontecera nada por causa daquela mácula, por isso não iria acontecer passados 18 anos. Ou será que a sua mãe tinha razão? Por instantes Jaden sentiu um grande peso na consciência por tratar a sua mãe daquela maneira, mas só ele sabia o que era ser repreendido por toda a gente em relação àquilo.



Deixando os seus pensamentos para trás, levantou-se da cama e dirigiu-se à casa de banho.



- O que é que disseste?

Virou a sua cabeça lentamente, olhando para trás com os seus olhos iluminados por uma ténue luz vermelha. Os seus cabelos pretos flutuavam, fazendo realçar os seus reflexos também avermelhados.



- O Portal está aberto!
Desceu do pedestal que escorava o seu trono majestoso e os candeeiros que sustentavam chamas que adquiriam diversas cores num curto espaço de tempo. Nesse momento apenas se ouvia o vento a sacudir os vidros das grandes janelas que ladeavam aquele salão. Este, de um momento para o outro, escureceu, enquanto a mulher, alta, de corpo esculpido no seu vestido comprido com reflexos que tremeluziam contra as paredes, calcorreava o salão, com o olhar a apontar para o nada.
Chegou perto de um homem de pele escura, cabelo igualmente negro, também com olhos vermelhos da cor do sangue.



Respirava calma e silenciosamente, enquanto sentia a voz da mulher a percorrer-lhe o pescoço. Os seus lábios roçaram-lhe na sua cara, esboçando um sorriso malévolo mas ao mesmo tempo quase doce.
- Sabes o que tens a fazer… não sabes, Abraxaz?



- Claro… - a sua voz grave e rouca entoou de forma rigorosa, ao mesmo tempo que desaparecia no meio de um fumo de cor flamejante que iluminou todo o salão.

4º Capítulo - Daisy e Nathan


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A primeira aula tinha passado incrivelmente rápido. Jaden sempre gostara de Técnicas Contabilísticas, sendo o aluno mais participativo em todas essas aulas. Mal saiu da sala, o corredor outrora vazio, encontrava-se apinhado de alunos que se sentavam no chão a ler livros ou que apenas se dirigiam apressados para o bar. Assim como vários professores se espremiam no meio da multidão com dificuldade.
Mas quando deu por si, Jaden já se encontrava mergulhado numa onda de pensamentos, fazendo com que as milhentas vozes que se faziam ouvir naquele corredor não passassem de meros e distantes ruídos na sua cabeça. Incomodado com aquele mar de gente, dirigiu-se para o pátio e refugiou-se na sombra de uma árvore, retirando da mala um jornal que tinha comprado no Quiosque perto de sua casa e que nunca tinha chegado a entregar ao seu pai.

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Desdobrou-o, e logo na primeira página encontrava-se um cabeçalho com letras gordas e vistosas: “Temperaturas podem atingir os 50ºC esta semana”. Indiferente àquela notícia, que devia ser estrondosa e preocupante, revirou os olhos e começou a ler as notícias das páginas seguintes.
Numa fração de segundo, uma pequena e quase imperceptível brisa fresca fustigou o seu rosto, mas o calor acabou por abafá-la rapidamente, levando-o novamente ao sufoco de sentir aquele ardor a incidir-lhe na pele, embora estivesse abrigado numa sombra.
As aulas seguintes não passaram tão depressa como a primeira. Talvez fosse do calor que se ia intensificando à medida que o tempo decorria, ou pelo simples facto de se encontrar cansado logo no início do dia.
À hora de almoço, não demorou muito tempo até o refeitório ficar completamente cheio de gente apressada. Numa mesa junto à janela, Daisy encontrava-se sozinha, a comer o seu almoço light habitual.
- Vejo que ainda fazes dieta… - disse Jaden, pousando o tabuleiro na sua mesa.

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Daisy sorriu levemente, enquanto limpava os lábios com um guardanapo.
- Não é dieta. Comer de forma saudável não faz mal nenhum a ninguém!
- Mas não deixa de ser uma dieta! – ripostou Jaden, com um sorriso genuíno, dando uma grande dentada numa sandes de atum. – Então como é que estás?
- Estou bem. Estou apenas um pouco cansada, nada de mais.
- Já somos dois! Mas deixa lá, acho que deve ser do calor. Quando o tempo começar a arrefecer já temos mais energia!
Daisy fez um sorriso amarelo e olhou para o antebraço de Jaden, mudando rapidamente a sua expressão.
- A sério, Jaden, devias ir a um dermatologista! – exclamou, olhando Jaden com uma expressão apreensiva.
- Para quê? Para me dizerem o que eu já sei? “Não podes apanhar sol nessa parte do braço” ou “Protetor solar de valor máximo nessa zona”?
- Se já soubesses seguias esses conselhos!
Jaden teve uma sensação ligeiramente colérica ao ouvir aquelas repreensões por parte de Daisy. A sua mãe dizia precisamente o mesmo, e ainda assim ele ignorava por completo.
- Então e o que estás a achar deste ano? – perguntou Jaden, tentando mudar de assunto. – Difícil… fácil…?
- Médio. Tirando o facto de me encontrar completamente perdida em técnicas contabilísticas. No ano passado faltei a quase todos os módulos dessas aulas.
- Se quiseres dou-te explicações!
- E desde quando é que tu és bom a técnicas contabilísticas? – inquiriu Daisy, com uma expressão de gozo.

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- Mais do que tu sou de certeza!
- Não. Prefiro que o meu pai me explique, obrigada! Bem, tenho de ir. Vemo-nos por aí.
Sorriu-lhe docemente e levantou-se com o seu tabuleiro já vazio. Por instantes, Jaden permaneceu a observá-la, enquanto deixava cair alface por entre as metades de pão da sandes. Sentiu uma estranha sensação de vergonha, embora Daisy já não estivesse naquele refeitório para gozar com ele.
Quando saiu da Universidade, o sol das 13:00H encandeou os seus olhos, obrigando-o a colocar um par de óculos de sol algures perdidos na sua mala. Ao longe viu Daisy a entrar no carro do seu pai, um homem de negócios e bem conhecido em toda a cidade. A sua expressão de indiferença ao ver a sua filha depois de um longo dia de trabalho incomodava Jaden de uma forma surreal. Mas Daisy não parecia importar-se com isso, e falava-lhe alegremente enquanto o pai sugava o seu cachimbo olhando para o nada. Na verdade, nem parecia minimamente interessado com o que a filha estaria supostamente a dizer, e rapidamente arrancou com o carro pela rua acima, em direção ao condomínio fechado em que viviam.
Do lado oposto do pátio, avistara Nathan. Um rapaz magro, com uma cara ossuda coberta de sardas e cabelo arruivado descomposto.

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Jaden conhecia-o desde a escola primária, e desde esse tempo que o rapaz tem revelado uma certa obsessão por ele. Sempre tentara dar nas vistas para Jaden reparar nele, e fizera de tudo para conseguir ser seu amigo. Naquele dia ia ficar sozinho, como sucedia há tantos anos. O pai ficara com o turno da noite na fábrica de enlatados, e a mãe ia passar a noite com a avó, que adoecera mais uma vez e não queria, por isso, ficar sozinha em casa. Tornara-se muito comum ficar longos dias dependendo apenas de si. Geralmente, porque os pais ficavam a trabalhar até tarde. Aproveitava sempre bem os fins-de-semana e as tardes de folga com os pais, momentos em que lhes punha ao corrente dos seus estudos.

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Apesar da distância de que sofria tantas vezes, via nos pais dois grandes exemplos de vida. E sabia que eles trabalhavam muito para poderem assegurar o seu acesso à universidade. Mas não deixava de, humanamente, sentir-se sozinho. Às vezes, ligava a televisão e imaginava que, na pequena sala de estar, estavam os seus pais a conversar. Outras, observava os retratos da família que se espalhavam por toda a casa e tentava imaginar o que eles diriam nesse preciso momento se não passassem de simples fotos. Era nessas alturas que ia para a casa da avó, bordar almofadas e fazer bolos e bolachas para vender. Mas agora que Nathan andava na Universidade e já não passava as tardes a ver desenhos animados, tudo isso lhe parecia desagradavelmente desinteressante. Costumava, por isso, ler. Fazia-o por mero prazer, um hábito que a mãe lhe incutira quando não passava dos 6 anos. Também adorava filosofia. Discordava vivamente da opinião da maioria dos seus colegas, em como a filosofia era maçadora e sem nexo. Para ele, era muito mais que isso. Noutras ocasiões, gostava de séries policiais. Essa tarde não iria ser diferente. Após o almoço, encaminhou-se para sua casa, pelo que Jaden presumiu logo que ia passar o resto da tarde no meio de pilhas de livros sobre teorias filosóficas ou simplesmente a olhar para o teto, esticado no sofá. Já o conhecia há vários anos.

3º Capítulo - Anos mais tarde...




Coast City era fustigada por uma onda de calor sufocante que não era nada comum para aquela altura do ano. Todos os habitantes tentavam encontrar um refúgio, uma pequena sombra, quando os raios de sol brilhantes e grossos insidiam, íngremes, sobre as casas e ruas.
O rádio estava ligado emitindo, ruidosamente, os relatos já nada impressionantes sobre o estado de tempo.

“As temperaturas estão altíssimas e vão aumentar ainda mais! E talvez cheguem aos 45ºC, ou seja, quase 105 Fahrenheit



Um rapaz encontrava-se estendido na sua cama, com o braço a cobrir os olhos e com uma ventoinha que emanava uma brisa que era rapidamente abafada pelo ar quente que se impregnava pelo quarto inteiro. Os raios de sol dourados transpunham os vidros das janelas, iluminando-o com uma luz natural morna.
As palavras do locutor da rádio transformavam-se em pó nos ouvidos de Jaden, e o vento fraco que a ventoinha velha brotava parecia fazer o sangue subir-lhe com mais intensidade à cabeça. As pálpebras pesavam-lhe, embora não conseguisse estar parado numa posição permanente devido ao calor.



- Jaden! Estás acordado? – perguntou uma voz do lado de lá da porta, que, a princípio, o rapaz pensou que fazia parte dos relatos da rádio.
Virou lentamente a cabeça e pegou num relógio de pulso que se achava algures no meio de panfletos sobre Basebol espalhados na mesa-de-cabeceira. Deu um salto brusco, fazendo chiar as molas da cama, ao ver que se tinha atrasado imenso. Eram 08:14H da manhã, e ainda nem tinha lavado a cara.
- Sim, estou mãe! – respondeu, embora a voz de lá de fora parecesse já não se encontrar mais ali.
Desceu as escadas num passo abreviado, com a mochila numa das mãos e com os livros noutra. Dirigiu-se à cozinha, onde outro rádio emitia mais relatos, os mesmos que ressoavam no seu quarto.
- Caramba, filho! Já é a terceira vez que te atrasas! – exclamou a sua mãe, com um tom de voz apreensivo.
- O Pai? – perguntou Jaden, ignorando o sermão da sua mãe.
- Estás a ouvir-me sequer?



- Não sei porque é que tens esse rádio ligado… já não dizem nada de novo.
Reparando na expressão um tanto ou quanto ressentida da mãe, por ter sido ignorada, Jaden deu-lhe um beijo na cara e saiu.
Se dentro de casa já estava um calor insuportável, na rua presenciava-se uma situação ainda pior. Rapidamente a sua testa humedeceu-se e o sangue subiu-lhe mais uma vez à cabeça. Jaden vivia num apartamento algures nos arredores de Coast City, mas o som do tráfego intenso do centro da cidade parecia mais próximo do que nunca.
Pegou na sua mota de um azul-elétrico, e colocou o capacete. Nenhuma brisa, por mísera que fosse, parecia dar sinais de aliviar aquele calor. Com a cabeça dentro do capacete, o calor parecia ainda mais, provocando a Jaden uma leve dor de cabeça, como se o seu cérebro estivesse a chocalhar contra o crânio.
Quando chegou à Universidade, não deixou de reparar na ausência de alunos que se fazia à entrada do edifício colossal.



Estaria assim tão atrasado? Estacionou rapidamente a mota, na diagonal, ocupando dois lugares, e retirou ansiosamente o capacete, limpando a testa transpirada. O interior da Universidade encontrava-se igualmente vazio. Mas mal entrou na sala, os alunos permaneciam numa agitação tremenda, andando de um lado para o outro, falando com o colega do lado, sentando-se nas mesas a contar anedotas. Claramente, o professor ainda não tinha chegado.
Jaden sentou-se no seu lugar, e olhou para as mesas da frente. Uma rapariga de cabelos louros escurecidos e olhos verdes da cor de esmeraldas falava alegremente com as suas amigas, enquanto rabiscava qualquer coisa no seu caderno. Mas quando Daisy olhou para ele, Jaden baixou imediatamente a cabeça, tirando uma caneta e começando a escrevinhar também.



Por instantes, vislumbrou a marca que se salientava da sua pele do antebraço. Era uma mácula que se assemelhava a uma nódoa negra quase sarada, com uma espécie de espiral que quase aparentava ser uma cicatriz queloide. Quase que se encheu de esperanças ao reparar que a mancha parecia estar a desaparecer, mas era inútil criar expectativas depois de 17 anos.
Olhou uma vez mais para Daisy. Agora esta permanecia quieta, sem falar com ninguém, arrancando a folha onde estava a escrever enquanto olhava para o professor que entretanto tinha chegado. Subitamente esqueceu-se da mancha e tentou ignorar o calor que se fazia sentir dentro da sala, prestando atenção à primeira aula do dia.

2º Capítulo - A Marca


O corredor do Hospital aparecia e desaparecia, intermitente, à medida que o as lâmpadas fundidas do candeeiro se acendiam e apagavam. Tal como o resto do edifício, o corredor encontrava-se praticamente vazio. Apenas um homem de muito mau aspeto, com roupas velhas e barba desfeita, se enterrava numa das cadeiras da sala de espera, a ler uma revista já desatualizada e com as páginas húmidas. Aquele hall era ladeado com cadeiras arranhadas e soltas dos seus suportes, rangendo quando alguém lá se sentava. Ao fundo, uma televisão de parede velha emitia sons ruidosos, juntamente com uma imagem tremida e granulada.



Para além desses roídos, os únicos sons que se ouviam eram os passos coordenados e apressados de um casal que se precipitava até à receção. A mulher, que trazia o seu bebé ao colo, denotava uma expressão fatigada e preocupada, olhando inúmeras vezes para o seu filho. O homem, com um olhar ausente, encaminhava-se exatamente na mesma velocidade que a sua esposa, com os olhos a salientarem-se da cara, e uma testa proeminente.



- Tens a certeza que a médica está disponível? – perguntou o marido, após longos minutos de silêncio à espera que uma administrativa os viesse atender.
- Tenho – respondeu a mulher, os cantos da sua boca a titubear ligeiramente. – Ela tem que estar disponível.
Nesse instante, uma administrativa saiu de rompante de uma porta que flanqueava o corredor, e com um sorriso doce, porém cansado, disse:
- Podem-me acompanhar, se fizerem favor? A doutora já está à vossa espera!
- Muito obrigada – agradeceu a mulher com o seu tom de voz melífluo.
O bebé não manifestava qualquer inquietação pelo ambiente em que se encontrava. Permanecia num silêncio ininterrupto enquanto se acolhia dos braços da sua mãe.



- Podem entrar, meus senhores! – exclamou a médica, enquanto colocava os seus óculos enormes no rosto.
- Obrigada, doutora! – agraciou a mulher, sentando-se numa cadeira em frente à secretária da médica. – Nós viemos aqui por causa do…
- Sim, eu sei! Os resultados já saíram…



A ligeira inquietação por parte da médica, por quase ter ouvido do que se tratava aquela visita, preocupou levemente o casal, que entretanto observava a carinha jovem e rechonchuda do bebé. A médica tinha-se levantado e ido buscar um dossier espesso, com folhas atafulhadas no seu interior.
- Jaden… Jaden… Jaden… - sussurrava a médica vezes e vezes sem conta enquanto remexia nos separadores do dossier. – Aha! Está aqui! Jaden Lory! 2 anos de idade, estou certa?
A mãe do bebé assentiu com uma expressão nervosa, enquanto oscilava os braços a fim de embalar o seu filho que entretanto acordara de um sono profundo.



- Bem… - fungou a médica, enquanto mexia na haste dos seus óculos maciços. – O sinal é benigno!
Rapidamente, o casal respirou de alívio, porém a voz rigorosa da médica interrompeu a celebração.
- Mas, meus senhores, é melhor terem cuidado! Não é uma mancha comum num bebé!
- Desculpe? – proferiu o pai do bebé, pigarreando de seguida como se se estivesse a preparar para um discurso – A doutora disse… mancha?
- Sim… foi o que ouviu, meu senhor!
- Mas não é uma mancha! Ainda ontem vimos o braço do bebé e… salientava-se uma espécie de espiral da sua pele!



Os olhos da médica, que se assemelhavam a globos vítreos, arregalaram-se subitamente. Ajeitou uma vez mais os seus óculos e empoleirou-se na sua secretária, com o olhar fixo no braço esquerdo do bebé.
Arregaçou a manga da sua camisola de algodão verde-claro, e rapidamente pôde vislumbrar uma mancha de cor azulada que se assemelhava a uma nódoa negra, e de facto, uma pequena espiral a realçar-se da pele macia e brilhante do bebé.
- Estranho… muito estranho, de facto! – murmurou a médica, num tom quase inaudível.
- Doutora, por favor, diga-nos! O que é que isto pode ser? – perguntou a mãe do bebé, desesperada.
- Vou mandá-lo novamente para exames. Até lá, têm de ser pacientes e aguardar! Eu já vi muitos problemas dermatológicos com bebés… mas como este…! Quando me mandaram examinar o braço do bebé, apenas vi uma mancha azulada. Mas agora surgiu uma espécie de cicatriz queloide…?



O casal parecia ainda mais sobressaltado com o estado alarmado da médica, pelo que esta sorriu ligeiramente a fim de aliviar a tensão que se começava a instalar naquele consultório, e de seguida baixou a manga do bebé, acariciando-lhe o pequeno rosto.



- Não se preocupem, meus senhores! Costuma dizer-se que as marcas de nascença nunca trazem complicações futuras…
Embora a notícia fosse consoladora, a mãe e o pai do bebé continuavam a trocar olhares entre si, com uma expressão desassossegada.
- Muito obrigado, doutora! Agradecemos o tempo dispensado – agradeceu o homem, com um tom de voz gentil.
- Ora essa, é o meu trabalho! Irei fazer os possíveis para que os exames sejam feitos o mais rápido possível! Manter-vos-ei ao corrente da situação! Tenham uma boa noite…
Num passo lento e descompassado, o casal dirigiu-se para a saída, não parando de trocar olhares cúmplices e de reprovação, como se as palavras da médica não passassem de cinzas nas suas consciências. E com um silvo e um roído surdo, a porta do consultório fechou-se.

1º Capítulo - O Início da Rivalidade




O céu ficou coberto por uma intensa nuvem vermelha. O som ensurdecedor da trovoada que eclodia bem lá no alto sobressaltou o povo, que num grito unânime de guerra, pegou nas suas armas e enfrentou o exército que se aproximava das muralhas das Dunas de Tariqq. O cenário que se prorrogava pelas ruas serpenteantes e estreias da cidade era aterrorizador… Ouviam-se estalidos atroadores de espadas e colidirem, jatos de luz a iluminarem as ruas. Mães curvadas pelo peso dos seus filhos que se contraíam nos seus seios, a tentar salvar as suas vidas. Cadáveres a levitarem como se fossem penas, ondas massivas de vento a assolarem tendas de sem-abrigo e gritos sofredores e persuasivos de mulheres indefesas…



No palácio, sumptuoso e preclaro, o Rei calcorreava os corredores de ladeados de estátuas para trás e para diante, inquieto por ver o seu povo a morrer nas mãos de um exército rival, que nem ele sabia de onde vinha. A sua cólera era maior do que o deserto que cercava o palácio, e tão difícil de cessar como os adversários que destruíam as muralhas da cidade. Lá fora, a luz prateada da Lua desaparecia no meio de fumo e fogo das explosões que destruíam em massa as casas e abrigos da população.
- Majestade! – Exclamou, nervosamente, um servo que vinha a correr, amedrontado pelo cenário de guerra que se fazia ouvir lá fora. – Não conseguimos encontrar a sua filha! Revirámos o castelo todo, e não encontrámos ninguém!
- Mas isso é impossível! Ela tem de estar aqui! Encontrem a minha filha! Encontrem a Radiah!
Contudo, uma voz doce e delicada irrompeu nos ouvidos do Rei Jareth, uma voz que se assemelhava à da sua amada, que esperara desposar antes da sua morte prematura.
- Pai… tenha calma! A… a Radiah não pode ter desaparecido, ela sabia que não podia sair do castelo!



- Pois, minha filha é isso que me atormenta mais! Sabe-se lá onde estará ela agora… perdida no meio daquela guerra… ou até mesmo vítima.
- Não vamos pensar no pior, Pai! A Radiah está bem… tenho a certeza!
Mas antes de acabar a sua frase consoladora, Aquah reparou que o seu pai já não se encontrava junto de si. Este já se encontrava a percorrer todos os corredores do castelo, a chamar pelo nome da sua filha vezes sem conta, esperando uma resposta. Mas a única coisa que conseguia ouvir era o ecoo da sua voz a entoar pelos corredores que se assemelhavam a pequenos labirintos.



Foi então que um grito perfurou o silêncio que começava a alastrar-se por todo o castelo. Um grito padecente que só podia ser da sua filha.
- Radiah? – Chamou Jareth, caminhando lentamente em direção a uma porta que se encontrava entreaberta.
- PAI! Por favor ajude-me! SOCORRO!
Desesperado, o Rei correu com todas as suas forças até à porta entreaberta, de onde os gritos ofegantes da sua filha se iam intensificando à medida que se aproximava do local. Pela fresta da porta aberta, não se conseguia ver nada a não ser um negrume intenso.
Entrou pelo quarto de rompante, sentindo a escuridão a tapar-lhe a visão, o que tornava difícil encontrar Radiah, pois os seus gritos tinham cessado entretanto. Jareth sentiu um aperto na boca do estômago e o seu coração a chocar fortemente contra o seu peito.
Alteou as suas mãos, e numa fração de segundo, duas chamas que se assemelhavam a cobras, rodearam cada uma, iluminando o quarto com uma ténue luz alaranjada.



O quarto encontrava-se perfeitamente arrumado, como se ninguém tivesse ali estado. E inesperadamente, a porta fechou-se, fazendo um estrondo anormalmente sonoro. O Rei olhou rapidamente para trás, as suas chamas diminuíam agora ligeiramente a sua intensidade.
E nesse momento, uma voz sibilante mas ao mesmo tempo melíflua, aproximou-se dos seus ouvidos. Sentia a sua respiração bem perto de si causando-lhe um arrepio intenso.
- Pensei que fosses mais inteligente Jareth… mas bastou uma pequena armadilha para te aniquilar de uma vez por todas. - A voz não parecia masculina nem feminina, mas sim um roído que ressoava asperamente por todo o quarto.
E logo de seguida, sentiu um punhal, frio e aguçado, a trespassar-lhe o peito. Não demorou muito tempo até aquela dor aguda o fazer contrair-se e decair pesadamente no chão de madeira do quarto. Sentia o sangue, quente e lívido, a escorrer-lhe pelas costas, enquanto tentava respirar a todo o custo. Mas não adiantava de nada… aquele corpo parecia já não lhe pertencer, e a última coisa que ouviu foram passos a afastarem-se do seu corpo que jazia estendido no chão, e um riso cicioso e malévolo a ecoar pelos seus ouvidos.



Mas rapidamente os sons que o rodeavam pareceram desvanecer-se. Fechou os olhos lentamente… as chamas que abraçavam as suas mãos tinham-se apagado, e o quarto tinha mergulhado novamente numa escuridão imensa.




“Durante anos, o Povo das Dunas de Tariqq chorou pela morte do estimado Rei Jareth. Um homem de boa fé, generoso e, acima de tudo, um bom governante. Sem ele, o povo começaria a vaguear numa escuridão sem termo.
Desde a morte do Rei, que o império se dividiu em duas cidades rivais… uma, Nau-Ashta, governada pela Princesa Aquah, a filha mais nova de Jareth. E outra, Melih Kibar, governada pela Princesa Radiah, a filha mais velha.
Aquah e Radiah, para dizer a verdade, nem parecem irmãs. Ambas defendem ideias e crenças diferentes, para não falar das personalidades completamente opostas, daí a origem de uma perpétua rivalidade entre as duas. É triste, pois nestes momentos mais difíceis todo o povo devia unir-se e lutar contra as adversidades, mas não. Acontece exatamente o oposto. Lutam entre si, e foi Radiah que causou isto tudo… ela dividiu as Dunas de Tariqq, separando famílias, amigos de longa data, transformando-os em rivais uns para com os outros. Radiah não respeita a vontade do povo, nem a vontade do seu falecido pai. É apenas controlada pelo ódio que tem à sua irmã, fazendo de tudo para a destruir. Mas de onde vem esse ódio? Como surgiu?”



- É aqui… afinal os mitos eram verdadeiros. – Sussurrou um rapaz, de cabelos prateados e de olhar levantado para um portal que se erguera mesmo ali à sua frente.
- Tens a certeza quanto a isto, Anon? Tu tens mesmo a certeza que existe realmente um mundo além do nosso? E se existir… que tipo de ajuda podemos arranjar lá?
O rapaz, quando finalmente conseguiu deixar de olhar fixamente para o portal, virou-se para trás. Uma rapariga, de cabelos loiros esbranquiçados com madeixas serpenteantes de cor laranja que se assemelhavam a pequenos fiapos de fogo, olhava para ele com uma expressão apreensiva e de olhos lacrimejantes.
- Não há volta a dar, Sylwanin… Eu tenho de fazer isto! Tenho de levar o meu plano avante.
- Mas vão dar por tua falta! – Exclamou a rapariga, com um tom de esperança na sua voz ligeiramente trémula.



- Eu posso muito bem ter ido numa viagem… ou simplesmente ter ido negociar com outros povos! Afinal… é esse o meu trabalho, não é?
Sorriu-lhe levemente e andou em direção ao portal, contendo uma lágrima ao canto do olho.
- Promete-me que vais ter cuidado! – Pediu a rapariga, a sua voz mais trémula do que nunca.
- Prometo! – Respondeu Anon, não saindo do mesmo sítio onde tinha parado para ouvir a rapariga – Deseja-me sorte!



E nesse instante, correu em direção ao portal. Um véu de luz azulada ondulava vagarosamente entre os postes de pedra amarela escura e envelhecida. O jovem de cabelos prateados, outrora com uma expressão determinada e confiante, parecia agora mais inseguro do que alguma vez dera a entender. O receio de atravessar aquele portal gigante crescia-lhe no seu íntimo, e o chão parecia esboroar-se sob os seus pés. Foi então que, rapidamente se sentiu a ser absorvido por um rasgo de luz, que fez desaparecer tudo o que o rodeava. A rapariga de cabelos esbranquiçados e todo o corredor que a cercava tinham-se desfeito em rasgos fragmentados de luz, dando lugar a outro mundo, completamente estranho e desconhecido.